Um festival de contrastes. Cinema que nos abalou, cinema que nos deixou frios. Em Veneza, talvez não tenha chegado nenhuma obra-prima, mas a seleção oficial conseguiu um corpo coeso e no qual vão prevalecer os melhores em relação aos que desiludiram. Naquele duelo habitual de quem fica a ganhar entre Veneza e Cannes, o festival francês talvez leve vantagem, mesmo quando pensamos que pelo Lido surgiu uma tendência relevante: histórias que reportam à praga do ressurgimento do totalitarismo e dos males do fascismo. Essa foi a trend, o tema-chave, seja por manifesta coincidência, seja pela verve da metáfora..Numa altura em que se fala de favoritos, os maiores ecos remetem para The Brutalist, de Brady Corbet, as três horas e vinte de um épico que faz do sonho americano uma conquista de desejo, ambição e arquitetura. A personagem de Adrien Brody é uma espécie de elo com um cinema perdido americano no qual se sentem vibrações de Orson Welles e de Vidor. Mas será que um júri presidido por Isabelle Huppert não poderá sentir a pressão moral em premiar Pedro Almodóvar em The Room Next Door? Com o espanhol apenas joga o contra de em 2019 já ter vencido o Leão de carreira… Mas era, realmente, ouro feliz para esta primeira vez nas longas em inglês de Almodóvar, mesmo sendo um filme de atrizes..De França há candidato forte.Mas há também a possibilidade de haver prémio supremo para Jouer Avec le Feu, das irmãs Coulin, o melhor que a França nos trouxe a concurso. O filme certo para se falar de como o fascismo nasce no lar de alguém de esquerda e da classe trabalhadora..De resto, na Copa Volpi das interpretações, muita tinta corre na imprensa internacional para a brasileira Fernanda Torres em Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, talvez só com concorrência forte vindo de Hollywood: Nicole Kidman em Babygirl e Angelina Jolie em Maria são rivais de respeito..Nas interpretações masculinas, o preferido da imprensa é o enorme Daniel Craig em Queer, embora haja a ameaça subtil de Jude Law em The Order ou do espantoso Adrien Brody em The Brutalist, caso esta obra não fique com o Leão… .O que a crítica portuguesa votaria....Fazendo uma ronda pela imprensa portuguesa, os resultados são curiosos. Tiago Alves e Lara Marques Pereira, enviados da Antena 1, se votassem, davam o ouro ao filme das irmãs Coulin, Jouer Avec Le Feu, o mesmo filme que o crítico do Público, Vasco Câmara, enquanto que José Vieira Mendes, a cobrir para o site HD Cinema prefere The Brutalist, de Brady Corbet, a mesma escolha para o Diário de Notícias. Sozinho está o jornalista do Expresso, Jorge Leitão Ramos, deslumbrado por Joker - Loucura a Dois, de Todd Phillips. .O caso luso-brasileiro.O produtor português, Luís Galvão Teles, veio ao Lido para a estreia do premiado Manas..Tinha ganho estatuto de favorito antecipado. Manas, de Marianna Brennand, o tal filme luso-brasileiro com algum mediatismo aqui no Lido. Venceu o prémio máximo da secção Dias de Autores. Joanna Hogg, a realizadora britânica, presidia a um júri composto por jovens de vários países. Trata-se de uma distinção que prestigia a produtora de Gonçalo Galvão Teles e Luís Galvão Teles, a Fado Filmes, com investimento minoritário na produção..O filme é a história de uma menina de 13 anos de uma comunidade da selva da Amazónia de Marajó, Pará. Uma menina que é abusada por um pai caçador, alguém que já tinha abusado da outra filha. Trata-se de filmar uma comunidade a tentar sair de um ciclo tóxico patriarcal. Será de certeza, pelo seu tom e tema, obra para viajar para muitos festivais..SEQUÊNCIAS DA MOSTRA DE VENEZA.Leão de Lata .Leurs Enfants Après Eux, dos manos Boukherma terá sido a desilusão do festival. No seguimento de Corações Partidos, de Gilles Lelouche (que terá querido realizar este filme…), visto em Cannes e esperado na próxima Festa do Cinema Francês, eis um cinema de indústria francesa, pensado para um público com instrução Netflix e olhar formatado nos acabamentos redondinhos da publicidade chique. Uma história de primeiro amor e sarilhos juvenis com muita música metida a martelo e um Paul Kircher longe da cinegenia que mostrava em Le Lycéen, o já famoso filme de Honoré nunca mostrado em Portugal. Como é possível, a Mostra de Veneza colocar em competição uma obra de bestseller literário sem literatura?! E sem cinema, já agora… A Surpresa .Foi o documentário que não deixou ninguém indiferente. Rienfenstahl, de Andres Veiel, chocou, perturbou e fascinou os cinéfilos que punham nos píncaros a arte cinematográfica da cineasta em que Hitler apostou. Este documentário com imagens nunca dantes vista mostra as mentiras de Leni e tece um complexo retrato de um caráter indómito. É o filme que tem coragem de expor o fracasso dela como realizadora de ficção. Vai estrear em Portugal! O Momento .Há uma cena em Lobos Solitários, de Jon Watts, que merece ovação a meio da sessão. Brad Pitt a correr atrás dessa grande, imensa revelação que é Austin Abrams, todo nu nas ruas de Nova Iorque gelada. No encalço está o outro lobo, num automóvel a acelerar, George Clooney sempre irritado. Há um efeito de vertigem, malabarismo, fantasia e humor nisso tudo. A melhor cena de ação que vamos ver este ano, mas sobretudo uma Nova Iorque noctívaga que pisca o olho sem vergonha ao After Hours, de Martin Scorsese… Em Portugal não estreará nas salas. O encontro .Luke Wilson não foi das maiores vedetas presentes nestes dias no Lido, mas foi dos encontros com a imprensa mais tranquilos e honestos do festival. Em Veneza veio como parte do elenco de Horizon - Uma Saga Americana Capítulo 2, de Kevin Costner, onde interpreta um rancheiro responsável por uma caravana de pioneiros. O ator que se notabilizou através dos primeiros filmes de Wes Anderson confessava-me estar curioso para perceber como as pessoas reagem a mais duas horas e 45 minutos desta saga western. As suas palavras serenas com sotaque texano confirmam que a sua personagem no tomo 3 vai finalmente interagir mais com o cowboy de Costner. Nas mãos, um bloco de notas com pensamentos sobre o que podia dizer aos jornalistas. O tal shut down à imprensa internacional teve boas exceções… A Confirmação .Chama-se Harris Dickinson e muitos repararam nele em The Souvenir Part II, de Joanna Hogg, e em The Kingsman: O Início, ao lado de Ralph Fiennes, mas foi o seu modelo hilariante em O Triângulo da Tristeza, de Ruben Ostlund, que mostrou que era mais do que apenas uma carinha laroca. Harris Dickinson é ator, tem uma intensidade aterradora. Isso confirma-se agora em Babygirl, o filme erótico sobre sadomasoquismo e dominação sexual com Nicole Kidman. O seu lado nonchalant é uma das muitas inquietações de um dos mais prazenteiros filmes da competição...Em Veneza