'Marés Vivas'. Uma odisseia cinematográfica em tom chinês
Nascido em Fenyang, na província de Shanxi, em 1970, Jia Zhang-ke é um dos cineastas chineses que nos tem ajudado a compreender um pouco melhor o seu país, muito para lá do esquematismo dos clichés mediáticos ou da retórica política. Com a estreia de Marés Vivas (revelado na competição de Cannes, em 2024), o seu sistema narrativo encontra um fascinante ponto de equilíbrio: ao percorrer as duas primeiras décadas deste século XXI, Jia Zhang-ke está também a revisitar momentos emblemáticos da sua própria filmografia.
Na sua abrangência temporal e dramática, o filme é um legítimo herdeiro de um género multinacional - o melodrama - que, além do mais, sabe evitar as convenções de um certo cinema “histórico”, em que se confunde o fazer história com a acumulação de personagens que se esgotam na sua banalidade “simbólica”. Aliás, se simbolismo aqui existe, é de natureza pessoal e conjugal - isto porque no centro de Marés Vivas surge, uma vez mais, a híper talentosa Zhao Tao, casada com Jia Zhang-ke e musa do seu cinema desde Plataforma (2000), uma evocação da ressaca social e cultural gerada pelas convulsões da Revolução Cultural maoista.
Em Marés Vivas, Zhao Tao interpreta Qiao Qiao, uma jovem da cidade de Datong (na província de Shanxi) que, no ano de 2001, trabalha como cantora em clubes noturnos e também como modelo num grande armazém da zona comercial da cidade. Para lá das singularidades do momento, dir-se-ia que Qiao Qiao é uma “sobrevivente” do cinema de Jia Zhang-ke, uma vez que já tinha assumido personagens com o mesmo nome, ainda que no seio de histórias bem diferentes, em Unknown Pleasures (2002) e As Cinzas Brancas Mais Puras (2018). Tal como em Plataforma, filme centrado numa banda rock que não corresponderia aos ideais da cultura maoista, também em Marés Vivas vamos escutando canções (algumas delas ocidentais) que estão longe de se esgotar num qualquer lugar-comum sociológico ou pitoresco.
Marés Vivas é mesmo um filme em que as canções permitem definir componentes capazes de corresponder a espaços de protesto ou intervenção política, num ininterrupto ziguezague entre as componentes sociopolíticas e as peculiaridades emocionais de cada um dos actores/personagens. Abandonada pelo companheiro Bin (Li Zhubin), que procura emprego noutras paragens, Qiao Qiao é mesmo alguém que vai sendo marcada pelos factos e assombramentos de uma China em permanente turbilhão.
Para lá da geografia
Na ausência de Bin, Qiao Qiao impõe-se, no plano dramático, como uma consciência ambígua da História próxima da China. Ela vive, aliás, acontecimentos de cruel dimensão coletiva: primeiro, no interior das comunidades marcadas pela construção da gigantesca barragem das Três Gargantas; mais tarde, quando o filme está a encerrar, em plena pandemia de covid. Tudo isto pontua o filme de Jia Zhang-ke com a precisão de quem sabe escolher as situações e as imagens mais pertinentes para caracterizar cada contexto sociopolítico, preservando a efabulação do destino de cada um.
Há qualquer coisa de Penélope chinesa na personagem de Qiao Qiao, esperando o regresso do seu Ulisses. Desta vez, a heroína é a mulher, desse modo rejeitando a existência de uma personagem fechada num cenário único: Qiao Qiao evolui como misterioso superego do filme, divagando por sucessivos territórios marcados pelos avanços de um país que se quis transfigurar através dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008 - era esse, aliás, o motor temático de 24 City (2008), outro título fundamental de Jia Zhang-ke, expondo a especulação financeira e as arbitrariedades urbanas cometidas em nome da acelerada reconversão das grandes cidades. No seu cinema, a vida dos lugares transcende sempre a geografia.