Os bebés e as suas mães, ou o realismo dos irmãos Dardenne.
Os bebés e as suas mães, ou o realismo dos irmãos Dardenne.Direitos reservados

Cannes à procura do humanismo perdido

'Un Simple Accident', de Jafar Panahi, consagrado com a Palma de Ouro, e 'Jeunes Mères', dos irmãos Dardenne, deixaram as marcas de um cinema que não desiste dos valores humanistas.
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Ao receber o Grande Prémio de Cannes, pelo seu filme Sentimental Value, o norueguês Joachim Trier lembrou um valor fulcral que o cinema pode encarnar e, de alguma maneira, promover - poderá ser um bom mote para um balanço da 78.ª edição do festival, encerrado no sábado com a vitória de Un Simple Accident, do iraniano Jafar Panahi. Lembrando que vivemos numa sobrecarga de mensagens breves, aceleradas, muitas vezes gratuitas, Trier elogiou o poder, de uma só vez formal e temporal, que o cinema pode partilhar com o espectador. A saber: o cinema oferece-nos “imagens às quais damos tempo para existir”.

Tempo para existir - eis um programa que um gigantesco festival de cinema nem sempre nos proporciona, de tal modo nos movemos entre os filmes vistos e os filmes sem tempo para serem vistos. A questão do tempo não é meramente teórica, decorrendo antes da capacidade de cada filme para nos mobilizar para os contrastes da dimensão humana. Nesta época de endeusamento das proezas tecnológicas, importa resistir à banalização dessa dimensão, como se fosse apenas um gadget do dia a dia. Importa, sobretudo, não deixar que o humanismo seja reduzido a uma mais-valia mediática para reforçar os equívocos do real à nossa volta.

Jeunes Mères, o filme dos irmãos Dardenne distinguido com o Prémio de Argumento pode servir de exemplo luminoso de tudo aquilo que está em jogo para o cinema contemporâneo que sabe respeitar a nossa relação com as coisas do mundo. Entenda-se: um cinema que não quer desistir do real. Em Jeunes Mères, encontramos mesmo uma peculiar, por vezes comovente, prova de real. Como? Através da presença dos bebés que vivem numa instituição de acolhimento para jovens mães solteiras. Se é verdade que os bebés são os atores que, literalmente, não é possível dirigir, não é menos verdade que a sua presença no ecrã pode atrair qualquer coisa de radical: são “apenas” presenças humanas que ignoram o artifício da ficção em que estão envolvidos - são totalmente reais, entregues à curiosidade com que tentam decifrar a estranheza de estar vivo.

Miroirs n.º 3, um drama enigmático filmado por Christian Petzold.
Miroirs n.º 3, um drama enigmático filmado por Christian Petzold.Direitos reservados

Com os Dardenne, mas também através do filme de Panahi, ou ainda em Two Prosecutors, do ucraniano Sergei Loznitsa, e Woman and Child, do iraniano Saeed Roustaee, os realismos prevaleceram para lá de qualquer ilusão de espontaneidade. E vale a pena relembrar que o realismo de Roustaee (cineasta iraniano, herdeiro da geração de Panahi) está longe de se confundir com o naturalismo “novelesco” que tomou o poder no nosso consumo audiovisual. De tal modo que o seu trabalho, de novo centrado nas convulsões de uma família, existe como derivação da grande tradição melodramática, transversal a cinematografias de Europa, Ásia e América.

Sob o signo de Ravel

Daí a frustração gerada por filmes de inequívoca sofisticação de recursos que parecem esgotar-se na ostentação desses recursos, como se o cinema fosse uma “arena” tecnológica, não um pacto de relação com o fator humano. Penso nos exemplos de O Esquema Fenício, do americano Wes Anderson, e Ressurection, do chinês Bi Gan - este, ao tentar construir uma espécie de parábola existencialista (?) sobre o futuro da Humanidade, parece-se mesmo com uma tese “universitária” em que o que mais conta é a acumulação de citações, dos irmãos Lumière até à Humidade de Blade Runner.

Fiquemo-nos, por isso, por uma memória breve de Miroirs n.º 3, o novo filme do alemão Christian Petzold, apresentado na ‘Quinzena dos Cineastas’, com a sempre brilhante Paula Beer no papel central. Digamos que é um drama lançado através de uma calculada inverosimilhança: uma estudante de piano tem um acidente numa zona campestre, sendo assistida por uma mulher que acaba por aceitar que ela descanse na sua casa - ela vai ficando, a situação normaliza-se, mas a sua naturalidade está povoada de fantasmas... Enfim, mesmo sem revelar o enigma que assombra a ação, podemos dizer que Petzold expõe a transparência do quotidiano como um cenário habitado pela misteriosa musicalidade das relações humanas - o título, aliás, remete para uma peça de Maurice Ravel, lembrando-nos que, por vezes, é preciso poupar nas palavras e dar tempo à música.

A herança festiva de Abel Gance

Dois exemplos de Magirama (1956): a “polivisão” segundo Abel Gance.
Dois exemplos de Magirama (1956): a “polivisão” segundo Abel Gance.Direitos reservados

Como já é tradição, a secção Cannes Classics distinguiu-se no interior do festival pela capacidade de manter e, mais do que isso, relançar uma componente essencial do conhecimento cinéfilo. A saber: o gosto pelo culto da memória, não como banal acumulação de detalhes pitorescos (como acontece em muitos discursos televisivos sobre o passado do cinema), antes como estudo dos mecanismos de fabricação dos filmes, a sua organização narrativa e as formas da sua difusão.

Abel Gance, por exemplo. Nascido em 1889, ele foi um genial pioneiro do mudo, tendo trabalhado incansavelmente até aos tempos da Nova Vaga, vindo a falecer em 1981, contava 92 anos. A sua procura de um obsessivo gigantismo cinematográfico gerou objetos radicais como Napoleão (1927), cuja cópia restaurada foi o grande destaque dos clássicos na edição de 2024 de Cannes.

Este ano, o festival mostrou uma raridade absoluta: Magirama, produção de 1956 em que Gance contou com a colaboração da cineasta e ensaísta Nelly Kaplan (1931-2020). As suas singularidades formais decorrem de experiências visuais e narrativas já experimentadas em títulos anteriores, nomeadamente nos minutos finais de Napoleão. Gance aposta numa divisão do ecrã em três imagens, ou melhor, em três ecrãs que deveriam ser montados lado a lado, de modo a gerar um enorme tríptico - deu-lhe o nome de “polivisão”.

Gance chegou a imaginar a projeção de Magirama em frente da Torre Eiffel, como um espetáculo que, literalmente, transfigurava o espaço da cidade - uma verdadeira festa urbana. As dificuldades logísticas inerentes ao projeto (cada ecrã deveria ter 9 metros de largura) tornaram a sua concretização impossível, de tal modo que Magirama permaneceu “invisível”, sendo agora recuperado em cópia única, combinando as três projeções numa única imagem.

A pequena Sala Buñuel que, tradicionalmente, acolhe os clássicos de Cannes não terá podido “duplicar” a radical ambição figurativa e epetacular de Gance. Em qualquer caso, foram momentos de genuína descoberta, para mais em registos muito variados - isto porque Magirama é uma colagem de quatro curtas-metragens, cada uma delas com um tom muito próprio.

A primeira dessas curtas (Auprès de Ma Blonde), com o inesquecível Michel Bouquet, não será estranha ao “neossurrealismo” de Kaplan. Depois, há duas montagens feéricas - uma sobre uma feira popular (Fête Foraine), outra a partir de imagens de nuvens (Château de Nuages) - que têm qualquer coisa de telediscos “avant la lettre”. Por fim, J’Accuse serve-se de cenas e diálogos do filme homónimo de Gance, lançado em 1938, protagonizado por Victor Francen no papel de um veterano da Primeira Guerra Mundial que, com invulgar contundência, apela ao fim dos conflitos armados. Em resumo: o classicismo renasce numa festiva modernidade.

TOP 5

UN SIMPLE ACCIDENT

Jafar Panahi

Questão dramática e cinematográfica, por excelência: o motor da história deste “simples acidente” é um som - um homem escuta os passos irregulares de um outro homem e identifica aquele que, na prisão, o torturou. Panahi filma a sociedade iraniana, não como um todo abstrato, antes como esse turbilhão de proximidades e contaminações em que o fator político está presente em tudo, mas mesmo tudo, muito para lá dos espaços institucionais.

JEUNES MÈRES

Jean-Pierre e Luc Dardenne

Fiéis ao seu realismo à flor da pele, os irmãos Dardenne filmam, desta vez, as convulsões vividas no interior de uma instituição de apoio a jovens mães solteiras. Num certo sentido, o filme retoma as questões materiais e simbólicas de A Criança (2005), expondo o modo como os recém-nascidos são protagonistas incautos de uma dramática reconfiguração do mundo dos adultos - tudo com a depuração de quem não desiste de olhar o mundo à sua volta.

FUORI

Mario Martone

Eis um dos títulos mais admiráveis da recente produção italiana, confirmando Martone como um nome fulcral dessa produção (desde a estreia na longa-metragem, com Morte de Um Matemático Napolitano, em 1992). Estamos perante uma delicada aproximação da escritora Goliarda Sapienza (1924-1996), bem longe das convenções do género biográfico. Ou como a escrita se enreda com as convulsões existenciais - belíssimo e, ao que parece, condenado a ser mal amado.

NOUVELLE VAGUE

Richard Linklater

Poderíamos aguardar este filme a partir de um preconceito: como é que um cineasta dos EUA conseguiria evocar a rodagem de À Bout de Souffle/O Acossado (1960), o filme de Jean-Luc Godard que serviu de bandeira à Nova Vaga francesa? Pois bem, o seu filme é de verdadeiro amor pelo cinema, não rejeitando os detalhes mitológicos, por vezes anedóticos, das memórias dessa rodagem, mas sempre a partir de um pressuposto vital: mostrar o cinema como trabalho.

TWO PROSECUTORS

Sergei Loznitsa

Talvez seja o filme da edição de Cannes/2025 que mais e melhor nos pode ajudar a responder a uma pergunta atualíssima: o que é, e sobretudo como funciona, um sistema político repressivo? O empenho de um procurador ao tentar esclarecer a situação de um homem “esquecido” numa prisão de Estaline, em 1937, surge como uma vertigem “kafkiana” em que reconhecemos a irracionalidade da repressão como um sistema concreto de laços humanos.

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