Durante esta noite, a receção e os jardins deixam de ser um hotel e transformam-se numa sala de espetáculos". O aviso, outrora comum na Estalagem da Ponta do Sol, há muito que já não era deixado nos quartos da luxuosa unidade hoteleira madeirense, cuja regular programação musical colocou no mapa da música dita mais alternativa. Foi já há mais de uma década que, por iniciativa do responsável de relações públicas Nuno Barcelos, 42 anos, a Estalagem começou a receber os famosos Concertos L, por onde já passaram nomes nacionais como Mão Morta, Sérgio Godinho ou Linda Martini, mas também internacionais como o americano Thurston Moore (Sonic Youth), a também americana Weyes Blood ou a argentina Juana Molina, entre tantos outros. "Já realizámos mais de 100 concertos e com o tempo passámos a ser reconhecidos pelo público como um local onde se podem assistir a espetáculos que de outra forma não passariam, na Madeira", refere Nuno ao DN, momentos antes de a música regressar ao jardins da Estalagem da Ponta do Sol, com a estreia ao vivo de EU.CLIDES. Antigo guitarrista de Mayra Andrade, Euclides Gomes, de 25 anos, apresentou-se pela primeira vez ao público na última edição do Festival da Canção, onde interpretou a canção Volte-Face, da autoria do produtor Pedro da Linha que esteve também em residência artística com EU.CLIDES na Ponta do Sol, onde deram início aos trabalhos de composição do álbum de estreia do artista português de origem cabo-verdiana, com edição prevista para o início do próximo ano. "Foi um desafio apresentado pelo Pedro Mota, o agente do EU.CLIDES, com quem costumamos trabalhar, que para nós representou o regresso a uma certa normalidade, embora com todas as limitações ainda existentes", salienta Nuno..Como é habitual, o palco está instalado no jardim, situado no topo de um penhasco, com o mar em fundo. A lotação, porém, foi bastante reduzida, devido à pandemia, de 600 para apenas 200 lugares, sendo obrigatória a apresentação de um teste negativo ou um certificado de vacinação completa para aceder ao local. O objetivo, assume Nuno, "é voltar logo que possível com uma programação regular, com alguns concertos no verão, o festival de música digital Madeira Dig no Inverno e residências artísticas durante o ano inteiro"..Situada no topo de um penhasco, a Estalagem resultou da recuperação de uma antiga quinta do século XIX. Conta com 55 quartos, todos com vista para o mar e construídos de raiz, numa área separada do espaço originalmente ocupado pela quinta e que durante a pandemia serviu de casa a mais de duas dezenas de nómadas digitais. "Sofremos como todos os hotéis, fechámos de Março a Junho e ainda estamos em lay-off parcial, mas não nos podemos queixar muito, porque até fomos dos primeiros a chegar ao número mágico dos 40 por cento de ocupação e foi isso que nos permitiu realizar agora esta residência", revela Nuno. No restaurante, o corrupio aumenta, à medida que se aproxima a hora do concerto. "É com muita alegria que estamos aqui a celebrar este conceito. Trata-se do primeiro evento deste verão e é muito simbólico regressar com este sangue novo, que também lança pistas para o futuro da música portuguesa", sublinha..O selo de garantia que os Concertos L se tornaram poderão ajudar a explicar a grande afluência de público à estreia ao vivo de uma artista com apenas um EP de cinco temas, Reserbado, editado há apenas pouco mais de um mês. A vontade de voltar a estar com amigos, a beber um copo enquanto se assiste a um concerto, também, mas a reação, primeiro de surpresa e depois de entusiasmo, à música de EU.CLIDES, essa foi claramente genuína. Momentos antes de subir ao palco, o músico confidenciara ao DN que "há muito procurava um som próprio" e quando o encontrou desistiu de tudo o que fazia antes para a ele se dedicar. "Precisava sentir que era original", confessa. E foi só quando sentiu que isso aconteceu que lançou o primeiro tema, Terra-Mãe, no qual estavam já presentes a sensibilidade, intimismo e espiritualidade que parecem nortear as suas composições, ainda assim (ou talvez por isso) tão difíceis de catalogar. "Há alguns pontos em comum em todas as minhas canções, como uma certa melancolia e nostalgia", reconhece EU.CLIDES, que tem formação em guitarra clássica ao nível de conservatório e também é músico de igreja. "Não consigo rotular a minha música também por causa da minha história. Se tivesse de resumir a minha música creio que passaria pela guitarra, pela voz e pela identidade da mensagem. E depois há esse lado religioso, que leva a uma certa introspeção", assinala. Influências que o produtor Pedro da Linha, com quem esteve em residência artística na Estalagem da Ponta do Sol, quer potenciar, já a pensar no futuro álbum de estreia. "Além de ser um local muito inspirador, ajudou bastante estarmos a trabalhar juntos aqui, durante estes dias é importante, fazer música assim, em pé de igualdade", afirma Pedro, que foi também o responsável pela produção do álbum de estreia de Pedro Mafama e do novo disco de Ana Moura, com edição prevista lá mais para o final do ano. "O meu único objetivo, enquanto produtor, é fazer com que o Euclides se sinta confortável e representado na música dele e o que aqui já foi feito, apesar de abranger várias sonoridades, vai nesse sentido. O objetivo é já lançar alguns singles este ano", refere..Entretanto, aproxima-se cada vez mais a hora do concerto e a ansiedade com a estreia aumenta, mas não tanto quanto o esperado. "Pensava que ia estar mais nervoso", assinala. A experiência enquanto músico de palco ajudará a explicar a aparente calma, apesar de agora tudo ser diferente. "É a minha música e nesse aspeto é tudo novo para mim, ainda não sei bem como se conecta e comunica com o público", admite. Não precisou de muito mais que a música para o conseguir, como se percebeu em temas como Desmancha-Prazeres ou especialmente Tubarão Azul, ambas repetidas no encore, já com toda a gente a dançar. É caso para dizer que ali, na Ponta do Sol, onde o astro rei mais brilha em toda a ilha da Madeira, poder-se-á ter assistido ao nascimento de uma outra estrela - o tempo o dirá..dnot@dn.pt