Mike Jay fez a história das drogas e não se esqueceu da viagem brasileira de William James ou do haxixe em As 1001 Noites
Mike Jay fez a história das drogas e não se esqueceu da viagem brasileira de William James ou do haxixe em As 1001 Noites

Uma boa história de viajantes psicadélicos célebres

O mundo proibido das drogas e a formação da mente moderna foi o objetivo da investigação do britânico Mike Jay em Psiconautas.
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Com o ensaio Psiconautas, o investigador britânico Mike Jay dá por encerrado o seu percurso de historiar o mundo das “drogas”, conceito de que não gosta por ser muito redutor mas o melhor para definir de forma alargada o objeto do seu estudo nas últimas décadas O volume, de quase 400 páginas, sucede a vários sobre a mesma temática, como Mescalina, Alta SociedadeA Atmosfera Celestial, Imperadores dos Sonhos ou, entre outros, Paraísos Artificiais (traduções literais dos títulos). A sua bibliografia tem outros temas, mas é Psiconautas que vem sintetizar duas décadas de investigação numa área em que estes estudiosos nem sempre foram bem vistos pela sociedade, designadamente pelas autoridades.

Não será por acaso que Mike Jay dá início ao livro com um apontamento sobre a dupla de médicos Wade Davis e Andrew Weil que, para justificar a utilização de uma toxina do sapo-boi tropical nas antigas culturas olmeca e maia, fizeram uma auto experiência e tiveram uma enorme dificuldade em publicar o artigo com as conclusões. As revistas Nature e Science recusaram e só a Ancient Mesoamerica aceitou divulgar em 1992, sendo que de seguida vários jornais publicaram artigos críticos à auto experimentação utilizada pelos dois médicos.

Jay confessa que foi por essa altura que o assunto lhe interessou: “Comecei a usar a Internet e desde logo e fiquei fascinado com a profusão de fóruns e de chats sobre o tema das drogas”. O resultado foi, entre os já referidos livros, o Psiconautas. Quando se lhe pergunta se não receou ser “cancelado” como acontecera a muitos cientistas que se interessaram pelo estudo dos efeitos das drogas nas suas épocas, Mike Jay garante que não: “Tenho escrito sobre este tema há vinte anos e, apesar de me terem avisado logo do perigo em o fazer, não desisti. Diziam-me que a polícia iria prender-me, que me colocariam numa lista de proscritos; acho que esse mundo já não existe e o assunto tornou-se normal. No entanto, acredito que me tenha criado um estigma e se fosse um autor que quisesse ganhar prémios literários não deveria ter escrito sobre estes temas.”

Também se o questiona se o manancial de informações que Psiconautas traz não faz dele um livro perigoso: “Espero que não e que ao lê-lo o leitor fique mais em segurança. O que é perigoso é a ignorância ou tentar descobrir o efeito de certas drogas sem o fazer em segurança. É importante perceber de onde é que vieram e, entre outras informações, eu incluo todas essas referências para se compreender em caso de uma experiência.”

Este é, portanto, um livro que trata de um mundo, muitas vezes psicadélico, em que o leitor não se perde; Mike Jay teve um dom tão didático como entusiasmante na sua escrita, de que resulta um ótimo manual histórico para se ter uma visão sobre as drogas. Quanto ao título, revela que o foi buscar ao psiquiatra Carl Jüng, um dos muitos citados no ensaio. Aliás, o leitor será surpreendido pelos protagonistas da auto experimentação e dos que deram uso às drogas em dado momento das suas vidas pessoais e profissionais. No mundo da psiquiatria, Freud é um dos mais proeminentes: “Há quem saiba que Freud usava cocaína, mas é preciso perceber que foi enquanto jovem estudante de Medicina e numa altura em que esses alunos não demonizavam as drogas.”

Mike Jay, o autor de Psiconautas

Entre a enorme lista de utilizadores que vai surgindo em Psiconautas, há vários exemplos curiosos: “É o caso do detetive Sherlock Holmes que nos primeiros livros tinha um vício por certas substâncias, que misturava no tabaco do seu cachimbo. Só que a partir do momento em que os leitores se multiplicaram por muitos milhares o autor destes policiais, Conan Doyle, achou por bem retirar esta ajuda ao raciocínio do detetive. Os primeiros leitores achavam espantoso que Sherlock consumisse cocaína, mas acreditavam que como reforçava a capacidade dedutiva dele não era um problema, só que com a má reputação que a substância veio a ter posteriormente, o autor concluiu que era uma imagem errada para Sherlock projetar e desapareceu dos livros.”

Há uma outra lista enorme: “Nos anos 1920 e 1930, foram muitos os artistas modernistas e pintores avant-garde que tiveram essas experiências. Esses anos foram o pico do seu uso no meio artístico, mas não faltavam médicos e psiquiatras que tinham interesse no estudo das alucinações provocadas por drogas, como a mescalina. Foi um período de enorme curiosidade, comparável ao dos anos 1960.” Não ignora Aldous Huxley e o seu livro autobiográfico Portas da Percepção, em que o escritor discorre sobre os efeitos da mescalina: “Huxley descrevia as sensações logo nas primeiras páginas e houve muitos médicos que procuraram respostas nesse livro para a cura da esquizofrenia. Soube-se depois que não era o melhor processo, sendo que atualmente se passa o mesmo com a opinião de que as drogas psicadélicas podem curar algumas doenças de foro mental. O livro teve direito a artigos especializados em revistas como a Time em que se defendia essa tese, mas rapidamente os críticos impuseram a sua posição contra.”

O enquadramento histórico de Mike Jay vai mostrar as razões da contestação oficial: “O golpe final é dado pelo presidente Richard Nixon quando declara guerra contra as drogas em 1971. Não foi um acaso, é que a procura estava fora de controle porque na década anterior crescera em muito o número de pessoas que estavam cada vez mais interessadas na introspeção e nas experiências que levavam a certos estados provocados pelas drogas. Era uma conjuntura em que muitos se encaixavam pelo desejo de ter determinadas sensações por influência do consumo, além de que era, em certos setores, valorizado como uma mudança cultural. Que vinha de uns anos atrás, quando o movimento da contracultura ia crescendo na sociedade norte-americana, mesmo que o uso de, por exemplo, a mescalina, ainda fosse de conhecimento de poucos, mas a tornar-se cada vez mais popular, como era o caso do vocalista dos The Doors, Jim Morrison. Também em muito por se saber de experiências daqueles que tinham descoberto o efeito de uns cogumelos de uma montanha no México.”

A fixação do cenário dos consumidores de drogas com intenções artísticas vai ser feita, diz Mike Jay, “pelos muitos escritores boémios franceses que faziam essas referências nas suas obras”. Não deixa de escrever vários capítulos para ilustrar outros exemplos inesperados: “A versão europeia do livro As 1001 Noites era no século XVIII muito diferente da original, onde a presença do haxixe em várias histórias era grande. Tal como no livro de Alexandre Dumas, O Conde de Monte Cristo (1884), que era um livro muito popular e trazia de forma explícita o consumo de haxixe.” Entre os mitos populares que existem no mundo das drogas há o do título da canção dos Beatles, Lucy in the Sky with Diamonds. Será a abreviatura para LSD, pergunta-se a Mike Jay: “Sim, acho que foi mesmo intencional a escolha do título. Os Beatles tinham experimentado LSD e quiseram escrever uma canção sobre isso.”  

O historial de combate às drogas não é esquecido em Psiconautas e no capítulo final relata-se as tentativas de impor controle às drogas: as convenções de Haia em 1911, a de Genebra em 1925 e a da ONU em 1961: “Passados estes anos todos, contudo o que aconteceu foi uma popularização das drogas entre as gerações jovens e tornaram-se mais mainstream; por outro lado, o seu comércio tornou-se um grande negócio a nível mundial, com novos produtos e muitos mais perigosos que floresceram com as proibições e a criminalização.  É como no tempo da Lei Seca nos EUA, se é proibido vender certas substâncias e surgem outras que geram um lucro muito maior.”

Inesperada é a novidade dos cigarros eletrónicos, os vape: “Há para todos os gostos e tudo o que possa ser dissolvido em álcool pode ser acrescentado ao vape. Daí que a variedade seja grande, de cannabis ou de muitas outras substâncias, que hoje têm um uso corrente”. Na Medicina, diz, “existe muita pesquisa e muito dinheiro envolvido em terapias psicadélicas em clínicas, mas o número de pessoas que se beneficiam ainda é pequeno quando comparado com as experiências fora desses locais”.

Psiconautas
Mike Jay
Zigurate
387 páginas

Outras novidades literárias

A (Des)colonização explicada

Apesar de 50 anos passados sobre o definitivo fim do império colonial português ainda não existe uma “ideologia” sobre o que foi e como deixou de ser. A descolonização, compreende-se o porquê de não estar contada por inteiro enquanto os militares do 25 de Abril e os ex-guerrilheiros africanos estiverem vivos e defenderem os seus feitos.  Quanto à colonização, a ignorância continua grande e há vergonha em assumir o papel de Portugal neste processo de séculos. Por isso, quando surge uma “enciclopédia” sobre este assunto, como este espesso volume intitulado Crepúsculo do Império, é de ler. Escreve-se na Introdução que “Cinquenta anos dão-nos um recuo temporal interessante para almejar a uma visão mais rigorosa sobre um processo que possui ainda o condão de suscitar discussões muito vivas, e apaixonadas, na sociedade portuguesa.” Apesar de o livro começar com esta afirmação feita de paninhos quentes, nas centenas de páginas que se seguem há muito para apreender e aprender neste trabalho de espírito académico.

Crepúsculo do Império
Vários autores
Bertrand Editora
800 páginas

A verdade dos artistas

O subtítulo do livro Monstros é O Dilema de uma Fã, bem significativo do que a autora pretende revelar, o mal que existe em muitos artistas socialmente bem aceites e artisticamente reconhecidos. A lista de revelações é grande e começa logo pelo realizador Roman Polanski, de quem diz não saber o que fazer quando precisava de escrever sobre ele: “Não existe outra figura contemporânea que reúna de forma tão equilibrada o absoluto da monstruosidade e o absoluto do génio”. A galeria de “monstros” é grande, mas há muitas outras categorias, como o endeusamento feito pelos fãs. O desfile tem protagonistas que merecem ser desnudados: Hemingway, Picasso, Nabokov, Carver, Doris Lessing, J.K. Rowling, Joni Mitchell, Miles Davis… a lista é longa.   

Monstros
Claire Dederer
Quetzal
304 páginas

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