A TERRÍVEL POLÍCIAComo é que a tristemente famosa polícia de estado da Alemanha, a Gestapo, se tornou tão poderosa e controladora da vida de milhões de vítimas. Nesta história sobre a organização existe uma explicação que não é de somenos, de que muitos alemães contribuíram com informações: “A Gestapo utilizou estas pessoas para criar uma sociedade de terror e para emular uma situação de omnipresença.” Não era uma novidade, em Portugal a PIDE também se alimentava de muitos informadores que, tal como entre os alemães, acreditavam na promessa autoritária de regeneração do regime.Somadas as páginas de três “calhamaços” que saíram nos últimos meses, rapidamente se conclui que o leitor não terá tido tempo para devorar o seu impressionante número: 1355 páginas. No entanto, as férias são o momento em que entre uma distração e outra se pode dar atenção a um deles ou, se pouco mais fizer, regressar com o trio integralmente lido. A saber: o diário Conta-Corrente (1969-1981) de Vergílio Ferreira, As Cartas do Boom de quatro dos grandes autores latino-americanos e Contos Completos (1945-1966) de Julio Cortázar.Os diários de Vergílio Ferreira estão entre os mais polémicos escritos por autores portugueses. O escritor não se impediu de dizer o que pensava sobre o país, os protagonistas da sociedade e da cultura, elaborar sobre a teoria literária e as vozes “inovadoras” que causavam sensação a cada chegada às livrarias. Não será uma coleção de cantigas de escárnio e maldizer, no entanto a mão do escritor não sente travão e o que pensa sai de forma clara ao longo destas páginas [também no segundo volume, entretanto publicado, sobre os anos 1982 a 1985].Curiosamente, na primeira entrada – 1/02/1969 - parece que Vergílio iria entrar com pés de lã no relato da sua vida e do que o rodeia: “Fiz cinquenta e três anos há dias. Como é óbvio, não acredito. Mas é a opinião do Registo civil”. Com um dia sem escrever, o dia 3 já plasmará o registo desta diarística, com uma diminuição da importância de António Sérgio poucos dias após a sua morte: “A verdade é que a obra dele vive largamente à custa da dos outros.” Três anos depois, regista o massacre dos atletas de Israel nas Olimpíadas de Munique, mas a razão é “beneficiar-se” do seu tempo para o questionamento literário em que se encontra: “Um colaborador da revista L’Herne demonstra num número dedicado a Borges que a Biblioteca de Babel é absurda”. Linhas à frente, expõe a sua crise: “Tremenda dificuldade com o romance. Porquê insistir?” Vai buscar ajuda a Fernando Namora: “Esteve aí há dias. Como de costume, caímos ambos no balanço da nossa geração como quem dá por encerrada a vida”. A Revolução de Abril dá pano para mangas ao diarista, que rapidamente se desilude e aponta armas aos defensores da cultura “popular”, como Vasco Gonçalves… mas é a vida interior de um escritor, a construção da obra, a ilusão e a desilusão sobre os seus pares, as modas literárias, os sucessos fúteis, bem como o estado da intelectualidade e da sociedade portuguesa que esta memória mais questiona e que surpreende por se manter com tanta atualidade décadas depois.Se o diário de Vergílio Ferreira é um espelho mais tristonho de uma vivência nacional, o volume que reúne a correspondência trocada entre quatro dos principais nomes da literatura latino americana é como um filme literário que decorre em cenários onde a cultura brilha como se fosse o farol dessas sociedades vibrantes do pós-guerra, e a descrição epistolar ilustra um período de ouro na confirmação da arte destes autores e de como se influenciaram ou abriram janelas uns aos outros: Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Em muito tiveram a ajuda da agente literária Carmen Balcells, que os elevou à categoria de deuses enquanto o sucesso de um impulsionava o sucesso dos restantes. Não eram os únicos deuses da literatura daquele continente abaixo da América do norte, mas a convergência criativa e a troca de experiências em determinada época das suas vidas permitiu que se construísse este volume, que refaz uma boa parte das razões para o sucesso literário que aquela parte do mundo não tinha direito face à importância histórica da literatura francesa e anglófona. Além de recolher também uma visão do mundo destes quatro autores ao longo de quase duas décadas e de lutas pelo espaço das suas literaturas, o que esta correspondência mostra é que é possível ocorrer um milagre de companheirismo entre escritores que vão tomando consciência do seu papel na literatura. Todo um cenário que se observa nesta recolha de mais de duzentas cartas trocadas entre eles.Entre os escritores de As Cartas do Boom, houve um que teve direito recentemente à edição de um primeiro de dois volumes de uma excecional coletânea de contos: Cortázar. Reconhecido como um dos grandes mestres deste registo literário, o autor argentino regressa às livrarias numa edição com centenas de páginas que reúne as duas primeiras décadas de produção sob este formato, que revolucionou como no volume intitulado Bestiário (1951), o seu primeiro livro. Este volume, no entanto, contém um conjunto de primeiros contos, reunidos sob o título A Outra Margem, que são de datas anteriores, a partir de 1937. Apesar de todos estes volumes serem espessos, têm uma bênção como leitura de férias e para serem lidos entre interrupções por serem uma leitura “fragmentada” e não um romance com capítulos extensos: o primeiro, de Vergílio Ferreira dividido em muitas entradas, o do Boom composto de cartas e o de Cortázar no registo de conto. Ou seja, entre um banho e outro vão-se lendo estes calhamaços imperdíveis. .CONTA-CORRENTEVergílio FerreiraQuetzal1167 páginas.AS CARTAS DO BOOMVários autoresD.Quixote558 páginas.CONTOS COMPLETOSJulio CortázarCavalo de Ferro797 páginas.Outras novidades literáriasA BIOGRAFIAEsta nova biografia de Hannah Arendt é considerada uma investigação que difere em muito das anteriores e o autor, Thomas Meyer, visto como o investigador que teve acesso a novas fontes e valorizou documentação que tinha sido ignorada. Arendt não é desconhecida do leitor português, mas esta biografia tem um início muito particular: começa com o embarque no navio Guiné em Lisboa, a 10 de maio de 1941, numa das várias viagens para que foi fretado para levar até Nova Iorque centenas de judeus que fugiam da Alemanha nazi. A biografada é um desses passageiros. A esta releitura inicial de Arendt são acrescentadas novas interpretações e em vários períodos da sua vida em muito reescrita, até porque com o passar dos anos existe a possibilidade de um novo enquadramento temporal..HANNAH ARENDTThomas MeyerEdições 70531 páginas .A TERRÍVEL POLÍCIAComo é que a tristemente famosa polícia de estado da Alemanha, a Gestapo, se tornou tão poderosa e controladora da vida de milhões de vítimas. Nesta história sobre a organização existe uma explicação que não é de somenos, de que muitos alemães contribuíram com informações: “A Gestapo utilizou estas pessoas para criar uma sociedade de terror e para emular uma situação de omnipresença.” Não era uma novidade, em Portugal a PIDE também se alimentava de muitos informadores que, tal como entre os alemães, acreditavam na promessa autoritária de regeneração do regime..BREVE HISTÓRIA DA GESTAPOSharon VilchesGuerra & Paz286 páginas