Na visita guiada, a curadora conta aos jornalistas a sua saga em busca de uma lupa, objeto que parece ter caído em desuso em favor de tecnologias óticas mais sofisticadas e portáteis. Flavia Frigeri, a protagonista de tal demanda, há muito que estuda a obra da pintora franco-portuguesa Maria Helena Vieira da Silva e é dela a responsabilidade curatorial pela exposição Anatomia do Espaço, inaugurada a 15 de outubro, no Museu Guggenheim de Bilbau, depois de ter passado, no princípio do ano, pela instituição homónima de Veneza.Mas a curadora está consciente de que este é um trabalho sem fim, pois há sempre mais uma camada a estudar, em busca de uma nova história, que naturalmente varia em função de quem olha. Como se Flavia estivesse em sintonia com o poema que Sophia de Mello Breyner Andresen dedicou à sua amiga pintora, Maria Helena Vieira da Silva ou o itinerário inelutável: “Minúcia é o labirinto: muro por muro/Pedra contra pedra livro sobre livro/Rua após rua escada após escada/Se faz e se desfaz o labirinto/Palácio é o labirinto e nele/Se multiplicam as salas e cintilam/Os quartos de Babel roucos e vermelhos.” . Curadora e atual diretora de coleções da National Portrait Gallery, em Londres, Flavia Frigeri procura, com esta grande exposição, fazer com que a artista plástica, nascida em Lisboa em Junho de 1908, “seja redescoberta por toda uma geração de apreciadores de arte que a conhece mal.” E concretiza: “Vieira da Silva é muito conhecida em Portugal, onde é encarada como um tesouro nacional, tal como acontece com Paula Rego, e também em França, onde viveu muitos anos, mas no resto do mundo caiu num relativo esquecimento após a sua morte, em 1992. Em Veneza, tive a sensação de que ela foi agora redescoberta por toda uma geração.”Esta Anatomia do Espaço, que pode ser visitada até 22 de fevereiro, está organizada de forma cronológica e abre com uma fotografia que nos dá a ver Maria Helena no seu ambiente de trabalho, em Paris, na década de 1930. A escolha, segundo a curadora, justifica-se “com a ligação muito forte que a pintora tinha com o próprio espaço de trabalho, que era o seu mundo, a ponto de influenciar mesmo a sua arte.” .“Vieira da Silva é muito conhecida em Portugal, tal como acontece com Paula Rego, e também em França, onde viveu muitos anos, mas no resto do mundo caiu num relativo esquecimento após a sua morte, em 1992. “.A primeira das oito secções que compõem a exposição intitula-se “Maria Helena e Arpad” e aborda a relação amorosa e criativa da pintora e do seu marido, o pintor húngaro, Arpad Szenes (1897-1985), através de uma série de retratos recíprocos pintados ao longo de várias épocas deste casamento que durou a vida inteira de ambos. Os destinos dos dois artistas cruzaram-se na escola de artes de Paris que ambos frequentavam. Uma relação fortíssima, tanto mais que, como frisou a comissária, “este é um dos poucos casos na História da Arte, em que, num casal de artistas, é a mulher que se destaca mais, sem que isso tenha constituído um problema para o marido.” Arpad respeitava a devoção total de sua mulher à pintura e celebrou-a nos numerosos retratos que fez dela a trabalhar, como é o caso de Portrait de Marie-Hélène, presente nesta exposição. Acrescente-se a este propósito que a relação de ambos chegou a ser objeto de um documentário do realizador português, José Álvaro de Morais, Ma Femme chamada Bicho (1976). . Este Portrait de Marie Hélène oferece ao visitante a sensação de surpreender a artista absorta no seu trabalho de enorme meticulosidade. Flavia Frigeri salienta “esta extrema atenção aos detalhes já que Vieira da Silva pintava um quadrado de cada vez, produzindo um efeito ótico muito interessante, muito influenciado pelos azulejos que ela conhecera em Lisboa.” É o que podemos ver no quadro O Quarto Quadriculado, de 1935, adquirido nessa época pelo artista britânico, Julian Trevelyan. “Não deixa de ser curioso notar que as primeiras pessoas a comprar obras de Vieira foram justamente outros artistas, mas também sabemos que grandes colecionadores, como Peggy Guggenheim, se interessaram pelo trabalho dela.” Em 1943, Maria Helena foi incluída na exposição 31 mulheres, organizada por Peggy no museu-galeria de Nova Iorque, e sabe-se “que a colecionadora terá adquirido, também por essa época, um quadro seu, embora não se saiba qual foi, nem onde está. Talvez um dia reapareça.” . A exposição segue, depois, para a análise da obra de Vieira sob a perspetiva da sua relação particular com o espaço. A segunda secção, “Anatomia do espaço”, reflete sobre o tema do estúdio atelier, local de trabalho da artista, mas também palco das suas reflexões sobre o espaço arquitetónico, muito patentes nas obras da década de 1930, onde as estruturas esqueléticas do meio envolvente adquirem uma dimensão tão física, que a poderíamos considerar quase anatómica. A comissária recorda, sobre este tema, a autêntica paixão que a jovem pintora tinha pelo estudo da Anatomia: “Na escola de Belas-Artes de Lisboa, essa dedicação era tanta que a fazia levar ossos, das aulas para casa, para continuar a trabalhar após o horário letivo.” Mais tarde juntaria a este fascínio, o gosto pela Geometria e pela Arquitetura.A terceira secção, “Xeque-mate: bailarinos, xadrezistas e jogadores de cartas”, reúne um conjunto de obras dedicadas ao tema dos bailarinos e dos jogadores de xadrez, como Danse; Tabuleiro de Xadrez Vermelho ou Jogadores de Xadrez, em que estes jogos se convertem em metáfora da existência humana. Esta é também uma das fases mais figurativas da obra da artista, em que as formas humanas ou animais se ocultam e revelam entrelaçadas com linhas e pontos. Flavia Fugieri explica: “Maria Helena adorava a ideia de movimento no espaço. Quando estava a estudar os quadros deste período precisei de uma lupa para ver todos os bailarinos, mas o resultado superou amplamente as minhas expectativas.” . A atualidade de uma obraNascida em 1908, a vida de Maria Helena, como, aliás, a do seu companheiro de sempre, Arpad, foi duramente atingida pelas tragédias do século XX e esta exposição recorda-o, sobretudo através do modo como a sua obra reflete essa vivência. A secção “A Segunda Guerra Mundial vista do Rio de Janeiro”, cidade em que o casal se refugiou depois do governo português ter negado a nacionalidade a Arpad, húngaro de origem judaica, dá a ver, de forma muito tangível, a angústia da pintora, separada da família por um oceano, numa época em que as notícias não eram céleres e em que o destino da guerra (e até o de Portugal, apesar da neutralidade) era totalmente incerto. Esse sentimento é particularmente sensível na obra de 1944, História Trágico-Marítima, que a curadora confessa ser um dos quadros de que mais gosta na exposição: “Os quadros que Maria Helena pinta neste período relaciona o figurativo e o abstracionismo de forma extraordinária. Foram pintados durante a Segunda Guerra Mundial mas as tragédias que nos mostram são intemporais. Só por eles, Maria Helena Vieira da Silva já seria uma artista relevante na atualidade.” .O regresso a Paris, em 1947, inaugura uma nova fase na sua pintura, com destaque para os quadros em torno das cidades, a que esta exposição do Guggenheim dedica uma secção, em que se destacam obras como Paris, la nuit (1951) ou Fête Venitienne (1949): “Não estamos perante a representação social ou urbanística de um espaço”, diz a curadora, “mas do sentimento que as cidades despertavam na pintora”. Por outro lado, quadros como A Cidade Tentacular (1954) e Personagens na Rua (1948) abordam a rotina da vida urbana, ela própria, sem qualquer referência espacial concreta. A exposição encerra com a impressionante secção dedicada ao papel que o branco desempenhou na investigação pictórica de Maria Helena, levando-a a um nível de abstração total. Flavia Frugeri conta: “É como se tudo o que tivéssemos visto antes nos conduzisse aqui. Ao longo da sua obra, Maria Helena voltava sempre ao branco, como cor da luz e do verão, mesmo que muitos dos seus trabalhos sejam bem mais coloridos.”Para a comissária, este não é o fim da história, considerando que muito há ainda por descobrir sobre esta artista sobre a qual julgamos saber tudo e, afinal, sabemos (ainda) tão pouco. Antes de mais, está ciente de que, apesar de ser possível reunir nesta exposição, trabalhos vindos de geografias tão díspares como Nova Iorque ou Lisboa, “há ainda obras que não sabemos onde estão, às vezes as exposições têm o efeito de levar as pessoas a revelar o que têm nas suas coleções. Vamos esperar.” . Flavia salienta, por outro lado, que quanto mais olhamos para o trabalho de Vieira da Silva mais coisas descobrimos sobre ela: “Não podemos simplesmente considerá-la uma cubista. Ela conhece várias influências, de várias escolas, linguagens e artes. Era uma grande conhecedora de música e isso também marcou o modo como representou o espaço e o ritmo das formas.” Um cruzar de linhas, luzes e formas que nos remete, uma vez mais, para o já citado poema de Sophia: “Exauridos pelo labirinto caminhamos/Na minúcia da busca na atenção da busca/Na luz mutável: de quadrado em quadrado/Encontramos desvios redes e castelos/Torres de vidro corredores de espanto/Mas um dia emergiremos/ e as cidades/Da equidade mostrarão seu branco/Sua cal sua aurora seu prodígio.” .Cerith Wyn Evans. Luz, som, ar, objeto - quando tudo conflui, o que acontece?