Um clube de leitura está reunido numa biblioteca pública em torno de um livro - que nunca é nomeado -, e a conversa fica de tal modo inflamada que a biblioteca incendeia-se. Nesse momento, os participantes transformam-se nos personagens da história que estavam a debater. O romance é Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, de 1953, e retrata um mundo distópico no qual os livros são proibidos por se acreditar que trazem infelicidade e geram conflito. Aos bombeiros foi confiada a missão de queimar todos os exemplares que encontrarem. O protagonista é Guy Montag, um bombeiro que cumpre zelosamente essa missão até conhecer Clarisse McClellan, que o leva a questionar o que faz. Ele começa a esconder livros em casa e a memorizá-los até ser denunciado pela própria mulher, Mildred Montag.A peça Burn Burn Burn das encenadoras Isabel Costa e Catarina Rôlo Salgueiro partiu do livro de Ray Bradbury para refletir sobre um tema atual. “Quando começámos a pensar o espetáculo, em 2023, estavam a sair notícias sobre a reescrita de certos livros que incomodavam, certas palavras, isto mais nos Estados Unidos. E então ficámos um pouco inquietas com esta questão, de porque é que a literatura é assim tão ameaçadora. O que é que há de tão perigoso nos livros ao ponto de querermos reescrevê-los ou querermos tirá-los de circulação, de se proibir certos títulos nas escolas, por exemplo. E isso foi o que nos aproximou mais do livro”, diz Catarina Rôlo Salgueiro ao DN. . Uma tendência, considera, à qual Portugal também não escapa. “Começamos a viver uma espécie de cultura de cancelamento, muito influenciada pelos Estados Unidos. De repente, há uma espécie de julgamento sobre as obras e sobre os autores que já escreveram e já morreram há muito tempo, sem olhar para o contexto em que as coisas foram escritas, uma espécie de negação do passado aos olhos do que estamos a viver hoje, no presente”, defende a encenadora que também é atriz da companhia de teatro Os Possessos, produtora desta peça em conjunto com a Culturgest.A História repete-se e é isso também que querem mostrar as encenadoras, que na peça fazem o papel de duas podcasters que vão enquadrando a discussão. “Somos o arco histórico desta coisa chamada cultura do cancelamento. É algo que é cíclico ao longo da história. Nós temos um exemplo, que é o julgamento do Charles Baudelaire. Em pleno século XIX, ele escreve um livro chamado As Flores do Mal, em que fala dos vícios e males da sociedade e é acusado de envenenar os leitores”. O objetivo é usar o passado para alertar para os perigos do presente. “Temos que ter cuidado com os sinais, eles são visíveis, eles estão aí”, diz Isabel Costa. . Mas se a longo dos séculos o ataque aos livros é recorrente, não há que perder a esperança. “Temos que nos agarrar também aos momentos apaziguadores, conciliadores da história, porque eles existem, são factuais”, sublinha a encenadora. “O espetáculo, a nosso ver, é otimista e esperançoso. O título, que significa queimar queimar queimar, é irónico”, acrescenta Catarina Rôlo Salgueiro.As duas podcasters vão levantando questões, como, por exemplo, se o Mein Kampf, o livro que Adolf Hitler escreveu em 1924 e que serviu de base ideológica ao regime nazista na Alemanha, deve desaparecer. “Mal de quem escreve ou de quem lê?”, interrogam-se. Na preparação desta peça as jovens encenadoras contaram com os “olhares exteriores” de Rui Pena Coelho, Ana Pais e Lígia Soares. “Eles têm pesquisas muito direcionadas para aquilo que nos interessa. O Rui trabalha muito a questão das utopias, o que é que pode ser uma utopia hoje em dia. A Ana Pais trabalha os populismos e a emoção, o que é que a emoção nos está a fazer, se nos controla - é uma questão que também foi muito importante para o espetáculo. E a Lígia Soares é uma artista que admiramos muito, que escreve belissimamente e que nos ajudou”, explicam. . A peça é protagonizada por Tomás Alves, que faz de Guy Montag, Beatriz Brás, que interpreta Clarisse McClellan, e Leonor Buescu, que faz de Mildred Montag. Entram também João Pedro Mamede, João Pedro Vaz e Leonardo Garibaldi, além das duas encenadoras, que também participam como atrizes.Burn Burn Burn estará em cena na Culturgest, em Lisboa, a partir de amanhã e até dia 1 de novembro. Entrará depois em itinerância, estando já confirmada a passagem pelo Seixal e Torres Vedras. .‘Agustinópolis': mundo de Agustina em 96 figuras. Não há quem se salve.‘O Senhor Paul’: resistir ao progresso sem sair do sofá