Quão milagroso pode ser, hoje em dia, o encontro com uma lata de rolos antigos? Foi num armazém de Santiago, capital do Chile, que um certo filme de John Ford, desaparecido há mais de um século, se deixou vislumbrar entre o pó dos arrumos. Segundo as notícias, a descoberta do académico Jaime Córdova, que comprou um lote de filmes a um colecionador, ocorreu em 2024. Mas na cópia de The Scarlet Drop (1918) que vai ser conhecida do público numa sessão da Cinemateca, em Lisboa, na próxima segunda-feira, dia 27 (pelas 19h; repete no dia 29, às 15h30), há um cartão de abertura que indica 2023 – seja qual for o ano do achado, o facto genial é que temos agora entre nós um pedaço raríssimo da obra de um dos maiores cineastas do imaginário americano. Com o título espanhol La Gota Escarlata a introduzir a luz no grande ecrã, deparamos com um filme de 50 minutos que contém já a gramática fundamental do cinema de Ford (então creditado Jack Ford), desde o típico enquadramento das ombreiras das portas à vibração dramática dos atores e paisagens do western; estas ainda desprovidas de uma lenda chamada John Wayne. Nessa altura, o ator de eleição era Harry Carey, cowboy na vida real que emprestou um índice de autenticidade à intriga na grande tela, colaborando com o realizador em mais de duas dezenas de filmes do género. Neste em particular, ele é uma personagem desprezada pela aristocracia num contexto em que se apaixona, justamente, por uma jovem dessa classe distinta. Produzido pela Universal, The Scarlet Drop pertence a um capítulo praticamente invisível da obra de Ford: o mudo. Isto porque grande parte dos negativos e cópias dos seus filmes desse período se perderam na sequência de incêndios que afetaram os arquivos da Universal e da Fox, onde o cineasta de Cavalgada Heróica trabalhou nas décadas de 1910-20. A versão que será apresentada na Cinemateca foi, pois, obtida a partir da cópia chilena, em nitrato danificado e incompleto, do qual se preservaram quatro das cinco bobines originais do filme, mantendo-se intactas as colorações da película, onde se supõe, apesar disso, faltarem alguns intertítulos. Ver The Scarlet Drop nestas condições significa, por isso, descobrir um tesouro delicado a que foram “roubadas” algumas peças. Mas ainda assim um tesouro reluzente. E com acompanhamento ao piano será ainda mais espantoso, ou não houvesse algo de vertigem primordial no contacto com estas imagens meticulosamente reparadas e conservadas. Porquê então 27 de outubro? Porque é o Dia Mundial do Património Audiovisual, nascido da Recomendação para a Salvaguarda e Conservação das Imagens em Movimento feita pela UNESCO em 1980. “A partir daí”, explica ao DN o diretor da Cinemateca, Rui Machado, “a FIAF (Federação Internacional dos Arquivos de Filmes) decidiu adotar este dia como o dia dos arquivos fílmicos, que passou a ser celebrado pelas Cinematecas. Aqui já o fizemos de diversas maneiras, sendo as sessões a parte mais visível desse trabalho. E este ano assinalamos com The Scarlet Drop, cuja história da cópia é a essência da razão de ser deste dia: um filme que estava desaparecido há mais de 100 anos e foi encontrado, preservado e restaurado.” O amor à película Incluída nestas comemorações está ainda uma nova cópia em película 35mm de O Intendente Sancho (1954), de Kenji Mizoguchi, uma das obras-primas do cineasta japonês, a passar às 16h30 de segunda-feira (repete no dia 31, 21h30). Sobre ela, diz-nos Rui Machado que foi uma escolha a pensar na importância da película enquanto formato resistente na era da digitalização: “A Cinemateca trabalha para vários arquivos internacionais, no que à preservação fotoquímica diz respeito, porque há muito poucos laboratórios tão especializados como o nosso. E um dos “clientes” da Cinemateca é o BFI [British Film Institute], que tem uma grande coleção de duplicados negativos síncronos de filmes internacionais. Daí surgiu o pedido para tirar uma cópia de O Intendente Sancho, a partir do duplicado negativo, e perante esta oportunidade, pedimos igualmente autorização para tirar uma cópia para a Cinemateca. Portanto, é isso que vamos exibir – não um restauro –, celebrando o formato original, a vida da película, para lá de todo o projeto de digitalização em curso”.