De vez em quando, ainda há filmes que nos levam a sentir e pensar o cinema para lá da estreiteza dos conceitos impostos pelo marketing mais conservador. São filmes cuja ressonância transcende as certezas adquiridas, individuais e coletivas, distanciando-nos do alarido gratuito gerado pelas redes (ditas) sociais. Guerra Civil é, ou melhor, está a ser um desses filmes, reforçando a posição de um estúdio independente, A24, no panorama ultra competitivo de Hollywood - chegou às salas dos EUA no dia 12; esta semana começa a aparecer na maior parte dos mercados europeus (a partir de quinta-feira em Portugal).Escrito e dirigido pelo inglês Alex Garland - estreou-se na realização em 2014, com Ex Machina, uma parábola sobre as relações entre humanos e robots -, Guerra Civil sugere um futuro mais ou menos próximo marcado por um conflito armado capaz de abalar todas as estruturas políticas dos EUA: um dos cartazes do filme apresenta mesmo o facho da Estátua da Liberdade transformado em trincheira de combate. Tendo em conta os violentos confrontos que o filme encena, o papel do Presidente (fictício) em tais confrontos e, por fim, a destruição de lugares emblemáticos do poder político em Washington, as ressonâncias simbólicas de Guerra Civil são transparentes e atualíssimas.Aliás, tais ressonâncias surgem na atualidade americana através de manifestações, no mínimo, curiosas. O próprio Garland tem sido “apanhado” em entrevistas elaboradas a partir de uma sugestão paternalista. A saber: Guerra Civil devia ser mais “explícito” na descrição e avaliação dos campos que coloca em confronto. A 10 de abril, no programa The Daily Show (Comedy Central), o apresentador Michael Kosta sugeria-lhe mesmo que ele tinha sido “propositadamente vago” na definição das forças que se opõem no conflito que o filme encena. A partir do mesmo tipo de sugestão, no dia 12, The Hollywood Reporter, publicava um artigo de Richard Newby apostado em consumar o ingénuo didactismo de “explicar” porque é que o filme “está a fazer com que o público se sinta tão desconfortável”. .Um filme adulto.Não parece possível negar duas questões muito básicas: primeiro, que através dos seus elementos ficcionais, Guerra Civil apresenta situações, lugares e ideias que evocam (conscientemente, sem dúvida) componentes da vida social e política da América do presente; segundo, que o filme não é um sermão moralista para uso em “talk shows”, resistindo a propor um qualquer esquema definitivo de “bons” e “maus” para caracterizar as suas personagens. Como se o génio criativo de Stanley Kubrick em 2001: Odisseia no Espaço (1968) devesse agora submeter-se à ignomínia de um qualquer tribunal televisivo… porque o ano de 2001 não foi bem assim…Há outra maneira de dizer isto: estamos perante um filme verdadeiramente adulto. Com metódica inteligência, nele se aplica o mais ancestral valor das artes narrativas: contar uma história não é uma “duplicação” do que quer que seja, mas sim uma aventura (narrativa, justamente) através da qual o leitor, ouvinte ou espectador é confrontado com formas de observação e reconversão, registo e recriação de dados que, não estando adquiridos para sempre, motivam outras imagens e novos pensamentos. Assim o disse Garland em The Daily Show, quando, humildemente, lembrou aquilo que qualquer filme razoavelmente sério tende a provocar: “Dar origem a algum tipo de diálogo, a um processo de pensamento.” Infelizmente, tudo isto acontece através do renovado recalcamento do infantilismo narrativo e moral, numa palavra, político de outros filmes que mobilizam elementos da mesma história “made in USA” e do seu universo simbólico. Como? Basta lembrar o modo como muitas aventuras de super-heróis desembocam em cenas de patético simplismo político, eivadas de um patriotismo pueril, reduzindo as dimensões políticas da nossa existência a esquemas rudimentares de descrição e avaliação.Ora, acontece que “ninguém” fala disso. Os super-heróis parecem mesmo protegidos por uma legislação apócrifa e um ecumenismo mediático (de raiz televisiva) segundo a qual os respetivos filmes pertencem a um domínio de “divertimento” que está dispensado de qualquer questionamento ideológico ou político… Uma coisa é certa: quando alguém como Garland recusa tratar os espectadores como crianças irresponsáveis e arrisca fazer um filme realmente diferente, interrogando a suposta transparência do real, aí o protagonista de tal “afronta” é convocado para se “justificar” perante o tribunal mediático. .Poster do filme Guerra Civil..Um novo apocalipse.Não simplifiquemos ainda mais, não menosprezemos a multiplicidade do fenómeno: toda esta agitação faz com que, pelo menos, Guerra Civil não seja anulado no caldeirão das rotinas mais preguiçosas do mercado. Eis um filme tanto mais motivador quanto a sua proposta de parábola política sobre uma América a ser metodicamente destruída por quezílias internas - “Todos os impérios caem”, diz outro dos cartazes do filme - possui um apelo universal que começa no seu “tradicionalismo” cinéfilo.Esta é, afinal uma saga “on the road”, protagonizada pelo grupo da veterana fotógrafa Lee (Kirsten Dunst). Na expectativa de chegar a Washington e conseguir uma entrevista com um Presidente cada vez mais incapaz de gerir as convulsões armadas que dilaceram o país, a sua deslocação tem qualquer coisa de viagem até ao “coração das trevas”, numa tragédia suspensa que Apocalypse Now (1979) sistematizou de forma definitiva. Mais do que isso, a muito jovem Jessie (Cailee Spaeny), desejosa de percorrer os caminhos do fotojornalismo de guerra, encontra em Lee um modelo que a leva a questionar os seus próprios limites, num frente a frente de gerações que encontramos em diversas vias do “western” clássico, nomeadamente na filmografia de Howard Hawks, incluindo esse clássico dos clássicos que é Rio Bravo (1959).Talvez que a própria identidade do grupo central de Guerra Civil - Lee e o seu colega Joel (Wagner Moura), na companhia de Jessie e Sammy (Stephen McKinley Henderson), veterano do New York Times - ajude a explicar o perverso “incómodo” gerado pelo filme. De facto, são jornalistas, apenas jornalistas a tentar trabalhar num contexto em que eles próprios reconhecem que não sabem quais as atitudes a tomar face à perturbante avalanche de acontecimentos que acompanham. O realizador tem também chamado a atenção para a universalidade desse aspeto, sem que as suas palavras encontrem grande eco: Guerra Civil é também (talvez mesmo sobretudo) um filme sobre a prática do jornalismo e o seu papel num mundo como o nosso em que a densidade dos factos questiona as raízes de qualquer trabalho informativo. Jornalistas incensados como “heróis” que se sobrepõem às glórias e aos sofrimentos dos figurantes anónimos das suas reportagens? Nada disso: Guerra Civil procura o avesso dessa demagogia, observando e celebrando a complexidade do jornalismo, dos seus pressupostos e deduções, dos seus valores e gerações.Eis um filme capaz de travar essa guerra narrativa, sem baixas nem reféns, utilizando como poucos as potencialidades do grande ecrã das salas IMAX, incluindo a sofisticação do respetivo equipamento sonoro. Com os seus ecos políticos e simbólicos, Guerra Civil é também uma celebração, realmente diferente, das potencialidades dos mais requintados recursos técnicos do cinema atual. Enfim, uma bela lição sobre o valor social do espetáculo e do “entertainment”.