Um encontro no Congo entre Che e um cão
Quando a escrita e o desenho se embrulham e um não pode passar sem o outro do que estamos a falar? À falta de melhor classificação, o livro O Tempo do Cão é apresentado como uma “novela gráfica”. António Jorge Gonçalves, ilustrador (para simplificar), e um dos autores juntamente com o escritor angolano Ondjaki, considera que “é o clássico fora de coleção”. Não é banda desenhada e não é um poema ilustrado. “No outro dia disseram-me: lançaste um novo livro de poesia? Eu disse, bom, pode ser. Mas ele não é um poema visual, porque ele é uma narrativa”, diz Ondjaki. “Ele realmente tem uma história. Então nós, em conjunto com a editora, abraçámos o termo novela gráfica”, remata António Jorge Gonçalves.
E como esta história não seria assim contada nem desenhada sem a dança entre escritor e ilustrador, o nome dos autores aparece com peso igual na capa, ao contrário do que aconteceu nos outros dois livros que já assinaram juntos (Uma escuridão bonita, de 2013, e o Convidador de pirilampos, de 2017). Um sinal dos tempos. “Tem a ver com uma questão que me toca mais a mim, e que está relativamente na ordem do dia dentro do âmbito dos ilustradores. O livro ilustrado tem vindo a ganhar um espaço e uma diversidade no mercado editorial que não teve sempre”, diz António Jorge Gonçalves. “E quando temos um livro que tem muito desenho presente, em que o desenho tem muita visibilidade, isso tem uma importância muito grande na maneira de contar a história. Até em termos legais, conseguiu-se, nos últimos anos, que ilustradores e autores do texto passassem a ter uma divisão, por exemplo, dos direitos de autor”.
Ondjaki acrescenta mais uns pós à questão: “Habitualmente, nas colaborações, vem primeiro - sei lá por que razão habitual, crónica e antiga -, o nome de quem tem uma maior contribuição com o texto. Nós achámos bem baralhar as coisas”.
Neste conto há uma personagem histórica e um sítio real, ao pé do lago Tanganica, no Congo, onde o guerrilheiro argentino Che Guevara esteve, de facto, e se relacionou com um cão. Ondjaki não deixou escapar este dado verídico, pequeno e à margem, que aparece num documentário sobre o apoio de Cuba aos movimentos independentistas africanos. “Eu ouvi essa história num documentário da BBC chamado Cuba! África! Revolução!”, relembra. Che terá participado numa missão secreta no Congo, e o comandante desse grupo de soldados relata, en passant, o episódio. “Uma vez estavam numa zona de combate no lago Tanganica e encontraram um cão meio perdido, abandonado. E esse batalhão adota o cão. Eu creio que um bocadinho mais o Che, porque ele descreve uma situação muito interessante em que eles são bombardeados, fogem todos e quando se conseguem reagrupar o Che pergunta: e o cão? E ele diz, sei lá do cão, ficou lá. Então o Che mandou ir buscar o cão”.
O pano de fundo é uma guerra, mas não é uma referência aos conflitos atuais. Afinal, sempre houve guerras e esta história começou a ser escrita em 2008, mais concretamente às 19h36 do dia 30 de setembro e teve quatro versões, a última das quais datada de 20.11.2024, às 09h12. As datas e horas estão inscritas na penúltima página do livro. Aliás, nada nesta obra está ali por acaso. A letra manuscrita e a letra de imprensa, as vozes do cão e de Guevara, são da mão do próprio António Jorge Gonçalves.
Entre uma versão e outra “houve um processo orgânico de trocas. Tanto na Escuridão, como no Convidador, como no Tempo do Cão, a partir do momento em que os dois já estamos a trabalhar no mesmo processo vamo-nos influenciando. Eu não tenho nenhum problema e gosto de rever todos os conteúdos a partir do momento em que o projeto entra numa fase em que não é um livro meu que o António ilustra, é um livro dos dois”, sublinha Ondjaki.
Nas páginas azuis traçadas a tinta branca veem-se guerrilheiros transformados. “O texto que o Ondjaki começou por me enviar como pontapé de saída não é o texto que encontramos aí. Quando o livro me chega, a primeira coisa que penso é: Que interessante, como é que este cão olhava para estes guerrilheiros? Será que o cão achava que eles tinham o olhar de cão, tal como nós quando olhamos para o cão, achamos que ele tem o olhar de gente?”. E assim aparecem desenhados soldados com corpos humanos e rostos caninos. "À medida que fui tomando contacto com as ilustrações, senti que é tudo uma visão canina”, diz Ondjaki.
E qual é a moral da história? Para os autores, nenhuma. “O meu pai, que é uma pessoa de 92 anos, mandou-me uma mensagem com o seguinte feedback: gostei muito, não é um livro para seguir uma ação, é um livro para nos deixarmos ficar e sentir”, observa António Jorge Gonçalves. Ondjaki reforça: “Eu aqui quero contar. Estamos a esquecer-nos disso, de vivenciar as coisas, receber o livro com e pelo prazer da arte. Não estou a dizer que o livro ou que a arte tenham que ser vazios, não é isto. Estou a dizer que temos valorizado pouco o desfrutar da experiência”.