É muito provável que a esmagadora maioria dos espectadores de cinema não conheça o nome de Susan Backlinie (1946-2024), mas todos saberão identificar a sua imagem no ecrã como a primeira vítima do filme Tubarão, estreado nas salas americanas no dia 20 de junho de 1975, faz esta sexta-feira 50 anos. Sem esquecer que tal imagem surge nas nossas memórias com o inconfundível acompanhamento, sincopado e inquietante, da música de John Williams.. Um ano antes, The Sugarland Express / Asfalto Quente, primeira longa-metragem para cinema de um talentoso jovem de 28 anos, Steven Spielberg, já com provas dadas no telefilme Duel / Um Assassino pelas Costas (1971), impôs-se como um ágil exercício dramático, entre policial e melodrama, inscrevendo o nome de Spielberg na dinâmica artística e industrial que ficaria na história com a designação de “New Hollywood”. Em todo o caso, nem mesmo os seus produtores, Richard D. Zanuck e David Brown, poderiam imaginar todas as implicações do projeto de Tubarão, que logo a seguir lhe entregaram..Para lá dos seus invulgares méritos artísticos, a adaptação do romance homónimo de Peter Blenchey (cujo título original, Jaws, seria conservado no filme) foi também um extraordinário fenómeno financeiro. Com um orçamento de 9 milhões de dólares, Tubarão era uma produção quase mediana - por exemplo, O Padrinho - Parte II, lançado em 1974, custara 13 milhões. O certo é que ninguém ousaria prever que, nesse ano, só no mercado americano, Tubarão iria acumular 133 milhões, mais do dobro dos 59 milhões obtidos por Voando Sobre Um Ninho de Cucos, de Milos Forman, nº 2 no Top de 1975.O primeiro blockbusterNa história financeira de Hollywood, Tubarão distingue-se como um dos títulos mais rentáveis de sempre. Considerando apenas os números diretos das receitas, encontramo-lo no 139.º lugar da lista global do mercado americano. O certo é que, relativizando, isto é, considerando os valores da inflação (e, em particular, o preço dos bilhetes praticados há meio século), Tubarão surge no sétimo lugar de uma tabela que continua a ser liderada por E Tudo o Vento Levou (1939) - no Top-10 dessa tabela não figura um único título do século XXI.. Dir-se-á que, em 1975, Tubarão dominou o verão dos blockbusters, mas importa não baralhar as memórias: de facto, Tubarão foi o título que inaugurou a idade moderna dos blockbusters. Isto porque o filme de Spielberg não foi apenas um espetacular sucesso dos estúdios Universal (com os quais a Zanuck/Brown Company assinara, em 1972, um contrato de exclusividade): Tubarão mudou de forma radical as regras de fabricação e, sobretudo, de difusão das maiores produções do cinema made in USA.Aliás, o Museu da Academia de Hollywood, em Los Angeles, está atento a esse lugar-charneira que Tubarão ocupa na história dos filmes americanos e, em boa verdade, de todo o cinema, dedicando-lhe, a partir de 14 de setembro, uma monumental exposição (Jaws: The Exhibition) - será a primeira vez que o museu organiza um evento do género centrado num único filme..Em 1975, os quase 2 milhões de dólares investidos no marketing de Tubarão correspondiam a uma percentagem inédita dos valores gastos na produção propriamente dita - aliás, a partir do último trimestre de 1974, essa estratégia envolvera uma promoção maciça da edição de bolso do livro de Benchley. Além disso, no chamado “mercado americano” (EUA+Canadá), numa medida inédita de lançamento global (wide, na gíria da indústria), Tubarão estreou-se num número recorde de 464 ecrãs.Agora, pelo menos no fim de semana do seu lançamento, as grandes produções ocupam três ou quatro milhares de ecrãs. Seja como for, no mercado de 1975, colocar um filme em mais de quatro centenas de ecrãs era um risco considerável. E acabou por ser a matriz fundadora de um novo tipo de produto: o blockbuster, precisamente.Claro que, pelo menos desde o já citado E Tudo o Vento Levou, a palavra blockbuster surge associada aos grandes sucessos da produção americana, mas é um facto que adquiriu novas ressonâncias a partir de Tubarão. Para o melhor e, sobretudo, para o pior, os lançamentos cada vez mais alargados (no mercado americano e a nível global), “obrigam” cada filme a acumular, no primeiro fim de semana de exibição, uma fatia considerável do seu rendimento (por vezes, mais de 50%), afunilando a oferta e instituindo um sistema de receitas “compulsivas” que pode arrastar consequências drásticas, pondo mesmo em causa a sobrevivência de um estúdio.A revolta da natureza.Por estes dias de continuada quebra de frequência das salas, a permanência de tais regras de produção e difusão está ainda mais abalada pela proliferação de plataformas de streaming. A ameaça que assim se desenha resume-se numa palavra bem conhecida dos especialistas e gestores da economia: implosão. Quem o disse foi o próprio Spielberg, afinal um talentoso fabricante de blockbusters, quando chamou a atenção para o perigo de “implosão” em que Hollywood passou a existir - o aviso foi feito em 2013, num encontro na University of Southern California, mas a sua pertinência não se desvaneceu.Ao contrário de muitos blockbusters que se seguiram (pense-se na banalização criativa dos estúdios Marvel), Tubarão surgia como um espectáculo de rara ousadia, indissociável de uma sofisticada fabricação técnica. Filmada por Spielberg, a história da cidadezinha (fictícia) de Amity, subitamente assombrada pela violência devoradora de um tubarão branco, resulta um verdadeiro objeto de fusão temática e metafórica: um invulgar exercício de suspense, uma revisão crítica do tradicional filme de família e, por fim, uma parábola amarga e doce sobre o clássico american way of life..O filme desemboca numa saga de sobrevivência protagonizada pelos três homens que vão enfrentar o tubarão (num barquinho denominado Orca). São eles o chefe da polícia local, um biólogo marinho e um caçador profissional de tubarões, interpretados, respetivamente, por Roy Scheider, Richard Dreyfuss e Robert Shaw. As suas atribulações refletem, afinal, um “desvio” simbólico, cujas ressonâncias sociais e políticas foram sendo reforçadas pela passagem das décadas: na sua voragem predadora, o tubarão já não pertence a uma natureza redentora, existindo antes como sinal ostensivo de uma clivagem brutal entre o “natural” e o “humano”.Para lá do rigor de mise en scène (tendo como base um detalhado storyboard), prevaleceu uma conceção primitiva na “fabricação” da figura (será que podemos dizer personagem?) do tubarão. Estamos longe dos animais digitais que, com maior ou menor eficácia visual, foram povoando muitas aventuras das décadas seguintes. Para Spielberg, o tubarão mecânico (na verdade, foram utilizados três) encarnava uma ameaça visceralmente física - os artifícios do espetáculo combinavam-se, por isso, com contundentes efeitos realistas.O tubarão, aliás, os tubarões exigiram um complexo artesanato, quanto mais não seja porque cada um deles, com os seus 7,6 metros de comprimento, implicava um desafio constante aos movimentos da câmara. Por vezes, para garantir o seu equilíbrio, não se usou um tripé, com a câmara a ser segura pelo respetivo operador (mesmo sendo um dos modelos “ligeiros” da época, pesava 15 quilos)..Com mais de 150 metros de cabos, o aparato elétrico de tudo isto foi sendo sujeito a múltiplas avarias, complicando o cumprimento do calendário de rodagem e quase comprometendo a data agendada para a estreia. Os resultados continuam a mobilizar espectadores de sucessivas gerações, mas sobre a possibilidade de voltar a rodar um filme cuja ação se passe, no essencial, em águas marítimas, Spielberg adotou um mote esclarecedor: “Nunca mais!”