O professor assistente Giorgio Sinedino em aula na Universidade de Macau.
O professor assistente Giorgio Sinedino em aula na Universidade de Macau.

Traduzir a história e o pensamento chineses (II)

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Existe ainda um conhecimento relativamente limitado sobre a riqueza da literatura chinesa, mas há todo um trabalho que continua a ser feito para promover a sinologia junto dos países de língua portuguesa. Quem o diz é Giorgio Sinedino, académico recentemente galardoado com o 18.º Special Book Awards of China, uma das maiores distinções oferecidas a tradutores, autores e editores estrangeiros pelo trabalho de promoção da cultura chinesa no exterior. Mais do que resolver desafios linguísticos, as traduções devem reproduzir o valor - intelectual, artístico e estético - que as obras chinesas têm no seu contexto de origem, salienta o professor assistente do Departamento de Português da Faculdade de Letras da Universidade de Macau.

Pode contar-nos mais sobre o seu novo trabalho dedicado à poesia de Lu Xun e o que o motivou a dramatizar as suas obras?

Trata-se de uma colectânea de contos lançada em 1923, em que se utilizou pela primeira vez a nova língua literária chinesa, uma língua decalcada do idioma coloquial, do idioma falado. Portanto, tem uma importância histórica muito grande. Em segundo lugar, o Lu Xun foi o primeiro grande intelectual público da história chinesa, teve uma série de experiências de vida muito interessantes. Posso dizer que era um espírito livre, uma pessoa com uma atitude muito crítica, perante si próprio, em primeiro lugar, e perante a própria cultura, em segundo lugar. Era um observador agudo das transformações políticas do país, e esse é um pouco o pano de fundo para as histórias reunidas nessa obra traduzida em português como “Grito”.

Que planos tem em termos de tradução e investigação? Há novas obras que gostaria de traduzir?

Planos para o futuro são muitos. Estão já em andamento. Tenho uma nova edição de “A Arte da Guerra”. Já existem muitas versões no Brasil, muitas em Portugal. O que vou tentar fazer desta vez é agregar o tesouro dos comentários clássicos, incorporar um longo texto que chamo de “Biografia de Sun Tzu”, de quem não existe uma biografia consistente.

Vou tentar explicar um pouco a carreira político-militar de Sun Tzu, a questão da guerra no período em que viveu, a transição entre a era da Primavera e Outono e a era dos Reinos Combatentes. Vou agregar informações sobre o desenvolvimento do regime, das instituições militares na China, às quais Sun Tzu deu uma contribuição muito importante.

O segundo trabalho continuará neste campo do período moderno da China. Depois de Lu Xun, vou trabalhar com um autor chamado Liang Qichao, extremamente importante para o desenvolvimento intelectual da China no período republicano, e o primeiro grande jornalista do país.

A tradução de Giorgio Sinedino realizada em 2025, Grito.
A tradução de Giorgio Sinedino realizada em 2025, Grito.

Numa perspectiva mais abrangente, qual o papel que a educação e a tradução desempenham actualmente na promoção do intercâmbio cultural entre a China e os países de língua portuguesa?

Como alguém de um país de língua portuguesa, acho que perdemos uma óptima oportunidade de criar uma sinologia em língua portuguesa. Macau, no século XVII, era o lugar de onde irradiavam os textos da China. Tivemos missionários portugueses que produziram livros sobre a China, mas em latim. O grande público não tinha acesso a essas obras.

Depois, no século XVIII, as coisas tomaram outro rumo. No século XIX, houve uma radicalização desse processo. No século XX, temos poucas personalidades que tentaram contribuir para a sinologia em língua portuguesa. Acho que o primeiro passo é a tradução. Precisamos de ter, em português, textos profissionais, bem feitos, acessíveis, que reflitam uma experiência mais profunda na China, um conhecimento mais profundo do idioma, uma maior intimidade com as histórias e ideias, com o tipo de debate intelectual que se faz na China.

Isso explica a minha ênfase, neste momento, no trabalho de tradução e não em preparar obras mais gerais, explicativas. Precisamos primeiro dos textos fundamentais. Precisamos de mais pessoas que, mesmo sem querer especializar-se em sinologia, tenham acesso a essas obras, textos interessantes para o leitor comum, que permitam uma visão mais profunda sobre a China. A tradução é uma resposta às necessidades do momento. Com a acumulação destas obras, mais colegas a fazer este tipo de trabalho e uma comunidade crescente com uma visão mais objectiva e crítica sobre a China, estamos ainda a lançar os alicerces da sinologia em língua portuguesa e daí a importância da tradução.

E Macau pode ajudar nesse processo?

Sem dúvida, Macau já teve um papel central nesse fluxo de ideias chinesas para o Ocidente. No século XVII, tivemos aqui isso. Temos de reconhecer que os jesuítas contribuíram muito. Os primeiros grandes sinólogos vieram da Companhia de Jesus. Infelizmente, Portugal quebrou esse vínculo. Acho que isso interferiu no treino dos nossos sinólogos. O Brasil tinha ainda maior dificuldade em chegar à China. Estamos a correr contra o tempo, e a tentar recuperar.

Estou em Macau há quase 12 anos. Temos uma comunidade dos países de língua portuguesa dinâmica, interessada em fortalecer esse intercâmbio. A ideia agora é expandir essa produção, fazer chegar ao grande público de língua portuguesa o que é produzido em Macau.

Como brasileiro, farei esse trabalho no meu país. Vejo com alegria o que está a ser feito em Portugal, académicos que também estão a tentar fazer esse trabalho, a criar pontes. E a ideia é essa: criar sinergias a partir de Macau, integrar melhor Brasil, Portugal, os PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa], e ver como conseguimos desenvolver conjuntamente a sinologia.

O texto desta página é extraído da REPORTAGEM da Secção de Pessoas, publicada na Revista Macau, em Setembro de 2025.

Iniciativa do Macao Daily News

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