Qualquer início seria injusto para este texto. O que significa que não dá para privilegiar uma ou falar em detalhe das 13 autoras russas que compõem a antologia Os Imbecis. Mas podemos, pelo menos, honrá-las dedicando umas linhas aos seus nomes: Vera Aksakova, Anna Bunina, Lidia Charskaia, Nadejda Durova, Zinaida Guippius, Nadejda Khvoshchinskaia, Anna Kirpishchikova, Sofia Kovalevskaia, Maria Shkapskaia, Nadejda Teffi, Marina Tsvetaeva, Lidia Zinovieva-Anniball e Anna Zontag. São elas, praticamente ilustres desconhecidas (com obra inédita em Portugal, à exceção de Marina Tsvetaeva e Nadejda Teffi), que ocupam agora as páginas da referida edição E-Primatur, um trabalho de excelência levado a cabo pela professora e tradutora Larissa Shotropa, que pôs os seus alunos a traduzir do russo prosa e poesia “que vão do amor às questões dolorosas da realidade”, como disse ao DN esta responsável pela organização e introdução de Os Imbecis. .Original na forma e no conteúdo, estamos perante um conceito inovador: “Esta foi a terceira edição que fizemos nestes moldes com a E-Primatur – a primeira eram contos genéricos, a segunda, contos relacionados com o fantástico, e agora voltámo-nos para as vozes femininas, que era uma ideia já antiga. São projetos da IlNOVA [Instituto de Línguas da Universidade Nova de Lisboa], mas funcionam como algo suplementar às aulas. A única condição é que os alunos têm de ter já um nível elevado de conhecimento da língua russa, e depois há a exigência da seleção e do trabalho sobre o texto”, explica Larissa. .Ao longo de pouco mais de 400 páginas, temos então uma montra riquíssima de literatura clássica que pode atingir o humor mais ácido ou a bondade mais extrema, como são disso exemplos a acutilante prosa de Nadejda Teffi que dá título ao livro (“Quanto mais culto um país, quanto mais calma e assegurada for a vida de uma nação, mais rotunda e perfeita é a forma dos seus imbecis”) ou o terno conto Popovna, de Lidia Charskaia. .Sobre a primeira narrativa breve do livro, O Cão, da autoria de Teffi, comentamos com Larissa que este nos remeteu para as imagens e ironia de um Nikolai Gogol. Impressão confirmada pela professora: “A escrita dela tem uma grande subtileza. Há um pouco de Gogol, como disse e bem, há um pouco de Tchekhov, no sentido em que, no final, leva o leitor àquilo que quer, seja numa perspetiva moral, crítica ou humorística... Há vários escritores que a influenciaram, incluindo Bulgakov, que foi seu professor.” Sendo uma escritora que já “à sua época chegava a todos, da monarquia aos bolcheviques, dos sociais-democratas aos operários. Porquê? Porque é uma escrita acessível que toca em temas tão atuais ontem como hoje.” .Literatura “feminina”.Os ImbecisVárias autorasEdição E-Primatur420 páginas.Por falar em atualidade, sentem-se também bons arrepios na espinha ao ler um conto diarístico de Lidia Zinovieva- Annibal – Trinta e Três Monstros – que aborda explicitamente, até com uma consistência erótica, a relação amorosa entre duas mulheres... Foi a primeira obra da literatura russa a fazê-lo, corria o ano de 1906, e tendo sido proibida na sequência do escândalo, no ano seguinte tal interdição acabou por ser suspensa (meses antes da morte da autora). .“Confesso que até pensei, quando surgiu a ideia de traduzir este conto, que poderia ser visto como um atrevimento da nossa parte!”, diz Larissa, reconhecendo que há hoje uma vigilância diferente daquela época, por mais incrível que possa parecer. “Era a época dos simbolistas, em que se abordavam temas até aí nunca abordados”. .Por si só, uma coletânea composta exclusivamente por vozes literárias de mulheres russas levantou dúvidas na organizadora da edição, que receava que o projeto fosse confundido com uma bandeira “feminista”. Esclareça-se, pois: a escrita destas mulheres não exibe, como condição, uma “sensibilidade feminina”. Tanto assim que algumas delas usavam pseudónimos masculinos, e outras vinham de meios profissionais pouco frequentado por mulheres, como é o caso da matemática e cientista Sofia Kovalevskaia. .Muitos nomes ficaram ainda de fora, naturalmente, mas Larissa Shotropa sublinha que o mais importante era preservar uma certa amplitude do retrato de época. “É preciso notar que as poetisas eram ainda mais mal vistas do que as mulheres prosadoras – dizia-se que não tinham talento, que a poesia não tinha profundidade... Enfim, quisemos por isso colocar prosa e poesia lado a lado, com o intuito de refletir, na amostra de textos, o século XIX e o início do século XX.” .Acrescentamos nós: uma janela de memória que se deve manter aberta, apesar daqueles que não são capazes de separar o contexto presente – guerra na Ucrânia – dos clássicos que fazem parte da nossa formação como leitores e seres humanos. “A arte, a cultura, a literatura, não deviam ter nada que ver com as ações de um governante, sobretudo quando falamos do passado. Isto é uma riqueza que pertence a todos”, lamenta Larissa, com um brilho de tristeza e esperança nos olhos.