Liam Neeson numa sessão de arriscada fisioterapia...
Liam Neeson numa sessão de arriscada fisioterapia...

'The Naked Gun': quem salva a comédia?

Há mais de três décadas, 'The Naked Gun' apostou em brincar com as regras de um certo cinema policial. Agora, 'The Naked Gun: Aonde é que Pára a Polícia' tenta recuperar o mesmo tipo de humor...
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A partir desta quinta-feira, 31 de julho, nas salas portuguesas, The Naked Gun: Aonde é que Pára a Polícia? tem na sua campanha um curioso cartaz em que Liam Neeson mostra o seu distintivo policial, “apoiando-se” na moldura da própria imagem numa pose de inusitada espargata de bailarino. A legenda prolonga o sarcasmo: “O alcance da lei nunca se esticou até tão longe...”

Em boa verdade, a imagem não pertence ao filme. Isto porque o humor que esta realização de Akiva Schaffer tenta recuperar e, de alguma maneira, reinventar não é especificamente burlesco. O que aqui mais conta não são as transfigurações mais ou menos ginasticadas (burlescas, precisamente) dos corpos, mas sim as componentes absurdas dos diálogos e também, logo a abrir, as desconcertantes palavras do discurso em off do protagonista, o tenente Frank Drebin Jr. — essa voz apresenta-se, aliás, como uma caricatura dos narradores da grande tradição do filme “noir”.

O novo Naked Gun é o nº 4 de uma das mais atípicas franchises geradas por Hollywood ao longo das últimas décadas. Concebido por um trio de criadores — Jim Abrahams e os irmãos David e Jerry Zucker —, vale a pena recordar que o primeiro título, Aonde é que Pára a Polícia? (agora recuperado como subtítulo português) surgiu em 1988, numa época em que a “grande aventura” (Indiana Jones & etc.) era ainda a matriz dominante das produções mais rentáveis. Aí ficámos a conhecer as atribulações do tenente Frank Drebin, interpretado, com apoteótica vocação para ser distraído, pelo veterano Leslie Nielsen.

Sempre a habitar um mundo de pernas para o ar (decididamente, a metáfora das pernas adequa-se a este universo...), Drebin regressou em 1991 e 1994 com dois títulos ainda mais absurdos. Ou seja: primeiro, Aonde é que Pára a Polícia? Parte 2 ½: O Aroma do Medo; depois, Aonde é que Pára a Polícia 33 1/3. Nielsen faleceu em 2010, contava 84 anos, e o assunto parecia encerrado. De facto, este retorno de Naked Gun, além de francamente banal, parece decorrer menos de um genuíno conceito de recriação ou reinvenção, ilustrando apenas a falta de visão de alguns executivos dos grandes estúdios (Paramount, neste caso) que tendem a identificar a ideia de sequela como princípio “obrigatório” de qualquer plano de produção.

Três décadas passadas, a escolha de Liam Neeson para interpretar o filho do primeiro Drebin — há uma cena com um retrato da personagem do pai para situar as memórias da própria franchise — tem tanto de bizarro como terá tido a estreia de Nielsen no filme de 1988 (ele que, tanto em cinema como em televisão, tinha sido quase sempre um competente secundário em registos predominantemente dramáticos). Quanto a Neeson, ultimamente dedicado a policiais mais ou menos estereotipados, convém não esquecer que, em momento fulcral da sua carreira, obteve uma nomeação para o Óscar de melhor ator pelo papel de Oskar Schindler em A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg.

Humor & nostalgia

Na companhia de Pamela Anderson, também ela marcada pela frágil glória da série Baywatch/Marés Vivas (1989-2001), Neeson compõe, assim, um investigador igualmente desastrado que, sempre com a máxima inocência, debita frases de surpreendente elaboração “intelectual” contendo sugestões sexuais mais ou menos obscenas... Há em tudo isto um esforço para reencontrar as raízes de um humor tão primitivo quanto contagiante, mas a nostalgia não basta para salvar a comédia (este género de comédia, entenda-se) da sua própria decomposição temática, artística e, no fundo, industrial.

Fica, aliás, a ideia de que o melhor dos filmes Naked Gun está ligado a uma tradição, não apenas cinematográfica, mas em grande parte televisiva. Penso, em particular, no humor surreal da magnífica série Get Smart/Olho Vivo (1965-1970), criada pela dupla Mel Brooks/Buck Henry. Outros tempos, sem dúvida.

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