Misel Maticevic e o minimalismo noir.
Misel Maticevic e o minimalismo noir.

'Terra Queimada'. Pelos bons velhos tempos

Apresentado na secção Panorama do Festival de Berlim deste ano, 'Terra Queimada', de Thomas Arslan, põe-nos em contacto com a beleza escondida de um certo cinema alemão. Um thriller cuja inquietude vem da escola antiga do film noir - uma reserva de frugalidade cinéfila.
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O cinema contemporâneo ainda tem destas coisas: de quando em vez, borrifa-se para as modas e sobrevive numa discreta elegância fora de uso. É essa a sensação nítida que fica depois de se ver um filme como Terra Queimada, do alemão Thomas Arslan, ele próprio um realizador discreto e “fora de moda”, de quem apenas conhecíamos - porque se estreou nas nossas salas isoladamente - o western Ouro (2013). Um cineasta de quem, a partir destes dois títulos, poderíamos registar uma lógica de criação de personagens que perseguem a materialidade da fortuna, mas que se confirma sobretudo pelo olhar solitário centrado nos solitários que caminham sobre a terra, seja na expressão de colonos alemães do século XIX em busca de riqueza nas minas ou de um criminoso habituado a sentir o peso das notas na mão, num mundo de transações digitais.

Em Terra Queimada, esse criminoso profissional é Trojan, alguém que anda nisto há tempo suficiente para se ressentir com os métodos modernos do crime. Uma personagem oriunda de outro notável filme de Arslan, Nas Sombras (2010) - agora disponível na Filmin -, que regressa à mesma Berlim na esperança de conseguir uma nova oportunidade de fôlego, depois do falhanço que ditou o seu afastamento. O problema é que quase tudo mudou, menos o casaco de cabedal preto de Trojan e a sua suspeição prática: os amigos avançaram na vida, consumando o pacote “emprego e família”, e o ramo de atividade que os unia transferiu-se para o dito universo virtual. Que fazer? Depois de um breve exemplo de negócio furado que justifica a desconfiança do protagonista, acaba por surgir a oportunidade por que Trojan mais ou menos esperava, na forma de um assalto a um museu. Mas calma, não será por certo o tipo de assalto que o leitor está a imaginar, com os ritmos apressados da “experiência cinematográfica” dos nossos dias.

O que surpreende, em particular, neste virtuoso thriller germânico é a sua natureza suave e predisposição para contemplar um trabalho: à semelhança do conterrâneo Christian Petzold, a Arslan interessa o tempo e os gestos associados a um trabalho específico (o do criminoso), enquanto fascinante gramática fílmica. Isto com um modus operandi que se situa tranquilamente entre a marca noturna de Michael Mann e o minimalismo mais puro de Walter Hill, acenando ainda à herança de Jean-Pierre Melville no que à configuração do film noir diz respeito.



Interpretado por Misel Maticevic com carisma conciso, Trojan é mesmo uma maravilhosa peça obsoleta, insisto, um homem de casaco de cabedal preto que, devidamente identificado com carros pouco modernos, inscreve o exílio interior em cada silenciosa travessia urbana. É um rosto que carrega a melancolia como quem carrega uma mala de dinheiro, cumprindo a sua tarefa num pequeno grupo de parceiros de crime com a facilidade de um perito e o pé atrás de quem conta com todos os cenários. Sempre aquela zona de indefinição que permite a fuga.
E é aqui que a escolha da obra Mulher ao Amanhecer, de Caspar David Friedrich, como peça a roubar do depósito de um museu, se torna um espantoso reflexo pictórico: tido como um quadro de dupla interpretação - em que o horizonte pode representar um amanhecer ou um pôr do sol -, parece que Thomas Arslan viu nele o sussurrante crepúsculo de Berlim. Um crepúsculo, de resto, palpável nas pequenas interações em nome “dos bons velhos tempos”, como se diz a certa altura, e com uma recusa do princípio da espetacularidade que triunfa pelo movimento macio e pancada seca. Em Terra Queimada, a noite leva-nos de mansinho. 

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