O novo diretor artístico lembra-se da primeira vez que veio ao Teatro Nacional de São Carlos? Lembro-me muito bem. Não lhe sei dizer exatamente o ano, mas recordo-me de assistir a uma produção de A Sonâmbula, de Vincenzo Bellini. Julgo que terá sido uma récita aberta a escolas e eu vim com os meus colegas de liceu. Teria uns 16 anos, talvez. Lembro-me exatamente da posição do camarote em que fiquei.E recorda-se da primeira vez que esteve profissionalmente?A minha primeira colaboração com São Carlos foi como compositor - e não é uma história isenta de controvérsia. Terá sido em 1999 ou 2000, num momento complicado na biografia do Teatro, marcado por grandes tensões orgânicas e laborais. Paulo Ferreira de Castro, que foi um notável diretor artístico, tinha criado, lado a lado com a temporada lírica, um festival de música contemporânea, “Música em Novembro”, e programou uma das minhas obras. Recordo-me de ter tido um ou dois ensaios; mas, a dado momento, a orquestra entrou em greve, por razões laborais, e o concerto foi cancelado. Os músicos desculparam-se, com cortesia, mas a luta sindical impunha-lhes a paralisação. Acabaram por interpretar a peça mais tarde, num outro concerto, mas eu estava no estrangeiro e não pude estar presente. Essa vez foi atribulada. E depois voltou outras vezes, claro…Como maestro, só muito mais tarde dirigi em São Carlos. Em 2019, com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, fizemos em São Carlos uma récita de Don Giovanni - um momento muito especial. Em 2024 dirigi, já com a Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do Teatro Nacional de São Carlos, Os Dias Levantados, de António Pinho Vargas - uma obra incontornável na comemoração do cinquentenário do 25 de Abril. No final do ano passado, dirigi ainda a versão cinematográfica de O Cavaleiro da Rosa, de Richard Strauss. Conheci, portanto, São Carlos como público, primeiro, mais tarde como compositor, depois como maestro. E eu creio que a função que agora exerço, como diretor artístico, congrega toda essa experiência e beneficia dela. Certamente dirigirei a Orquestra e o Coro em alguns projetos, a cada temporada, mas, nesta fase, a minha missão principal é ter uma visão de conjunto e projetar São Carlos no curto, médio e longo prazo.Já tive a oportunidade de o entrevistar no Teatro alla Scala, após a sua atuação na grande sala de ópera de Milão. E, antes, de assistir à Flauta Mágica, de Mozart , dirigida por si no Teatro Thalia, aqui em Lisboa. E isto leva-me a perguntar se, apesar de haver muitos espaços dignos, uma ópera beneficia com salas como La Scala ou São Carlos? Trazem um ambiente especial?Absolutamente! Aliás, São Carlos é, em parte, uma reprodução arquitetural de La Scala, que tinha sido construído 15 anos antes: La Scala data de 1778 e São Carlos foi inaugurado em 1793, cerca de quatro décadas após o Terramoto, que destruiu a antiga Ópera do Tejo. São teatros maravilhosos, quase peças museológicas, uma espécie de templos da arte lírica. E, nesse sentido, levar à cena uma ópera em São Carlos é uma experiência singular no contexto nacional.Mas vai agora ter um novo desafio: as obras de renovação, atualmente, obrigam São Carlos a sair do seu espaço e a mostrar-se ao país - o que também constitui uma oportunidade...Sem dúvida: pela força das circunstâncias, São Carlos torna-se um teatro nómada; e isso permite-lhe (permite-nos) cumprir uma missão imprescindível de descentralização. Repare: nenhum ecrã substitui a experiência de assistir a uma ópera ao vivo; no entanto, o único teatro de ópera do Estado português situa-se a 500 quilómetros de Bragança, a 300 do Porto e de Faro, a duas horas de avião de São Miguel. O resultado é uma grande distância do cidadão relativamente ao espetáculo lírico, uma desigualdade no acesso à cultura. As obras, justamente, obrigam o Teatro a sair de si mesmo, a abrir-se à itinerância e a cumprir uma presença mais transversal no conjunto do território. É um momento histórico.Mas a marca São Carlos vai lá estar, com todo o seu prestígio, a cativar as audiências.Estará, com toda a certeza. Uma parte desse trabalho já tem vindo a ser feita, com um grande empenho da administração. A atual temporada, 2025/26 elaborada pelo maestro João Paulo Santos, prevê já alguma circulação. Em 2026/27, eu gostaria de ter uma abordagem ainda mais focada na itinerância e menos centrada em Lisboa. Na minha perspetiva, São Carlos deve constituir um repertório com diferentes tipologias de espetáculo, do ponto de vista da dimensão cénica. Repare: Portugal é atravessado por uma maravilhosa rede de teatros, mas fora de Lisboa só três cidades dispõem de palcos com dimensão e fosso de orquestra capazes de acolher grandes produções. Em outras cidades, por outro lado, temos mais de uma dezena de teatros aptos a acolher produções de dimensão média; e temos ainda mais teatros capazes de acolher pequenas produções de ópera barroca ou contemporânea. Esta “polifonia de espaços” sugere uma “polifonia de produções”: nesta fase da sua história, Teatro nómada, São Carlos deve ter disponíveis, simultaneamente, diferentes produções destinadas a diferentes tipologias cénicas. É a única forma de irmos realmente ao encontro do território: desenhar espetáculos que o território possa integrar na sua programação.Pode já dizer uma ou duas óperas que tenha pensado incluir na programação?Tenho pensado em muitas, em função dos espaços possíveis. Para espaços como o Teatro Viriato, de Viseu, o Garcia de Resende, de Évora, ou o Bernardim Ribeiro, de Estremoz, por exemplo, poderíamos propor um Orlando furioso de Vivaldi, um Doido e a Morte, de Alexandre Delgado, The Rape of Lucretia, de Benjamin Britten, entre tantas. Para espetáculos de dimensão média, seria interessante desenhar uma trilogia Mozart/Da Ponte preparada para circular no território e só confluir em Lisboa em 2027.Mozart é, de certo modo, o seu compositor preferido? Tenho muitos compositores preferidos [risos]. Ao Porto, a Coimbra, a Guimarães, podemos levar Wagner, Puccini ou Mussorgsky; mas para o conjunto do território a ópera romântica não é adequada aos espaços existentes. Mozart, Rossini ou Donizetti permitem produções mais facilmente vocacionadas para a itinerância. Por outro lado, Mozart é talvez o compositor que praticou uma escrita mais natural, do ponto de vista do canto.Mais natural em que sentido?Para um pianista o instrumento é o piano, para um violinista o violino; mas para um cantor o instrumento é a voz, é o próprio corpo. E a vocalidade em Mozart é particularmente adequada ao instrumento humano.Associamos muito a ópera à língua italiana, ao alemão também, e ao francês, mas o inglês, o espanhol, o russo, o português, todos são línguas de ópera. Está nos planos uma ópera de autor em português no São Carlos?É indispensável: tanto do ponto de vista do património, como do ponto de vista da criação contemporânea, São Carlos deve ser um instrumento ao serviço da lusofonia. Património e criação são, aliás, dois dos três eixos que devem orientar a programação de São Carlos: repertório, património e criação. Em matéria de património, e lado a lado com o grande repertório lírico, é imperativo apostarmos numa redescoberta do espólio riquíssimo que dorme nas nossas bibliotecas: obras que fizeram a glória do seu tempo e que devemos hoje ter como missão redespertar. Uma nação é a sua cultura, é a sua memória. Sempre me pareceu espantoso que uma grande parte da obra operática de Marcos Portugal, uma estrela na Europa do seu tempo, esteja ainda por descobrir.Do período de Dom João VI, e chega a ir ter com o rei ao Brasil...Sim, sobretudo ainda como Príncipe Regente. Junta-se à corte no Brasil, tem toda a razão, onde cuidará da educação musical do futuro D. Pedro I e onde verá as suas obras representadas no Real Theatro de São João que, por sua vez, era uma réplica de São Carlos no Rio de Janeiro. Acaba por morrer desse lado do Atlântico, embora o fundamental da sua carreira tenha sido feito na Europa. Escreve essencialmente em italiano e, ocasionalmente, em português. E pode ser hoje um compositor chave no estabelecimento de parcerias e no fortalecimento de relações culturais entre Portugal e o Brasil.A língua portuguesa em termos operáticos funciona tão bem como outras línguas?Na minha opinião sim, é apenas uma questão de habituação do ouvinte e, claro, da sensibilidade do compositor à língua. A tradição italiana tem a ver com a própria origem da ópera, na Toscana e na Lombardia do início do XVII. Quando a ópera chega à corte de Luís XIV, pelas mãos de Giovanni Battista Lulli, um florentino emigrado em França, o espetáculo passa a chamar-se “tragédie lyrique” e o italiano é substituído pelo francês, a partir dos anos 1670. O mesmo na Inglaterra dos Stuart, na década seguinte: Purcell e John Blow escrevem em inglês. A corte portuguesa preferiu importar compositores italianos. Foi uma decisão política, e ainda hoje tem consequências. Quando, há 15 anos, estreei em Londres a minha primeira ópera, O Sonho, a partir de um texto de Fernando Pessoa, muita gente ficou surpreendida com a musicalidade do idioma. Eu creio que São Carlos deve absolutamente investir na criação contemporânea também em português.Quando fala de criação, está a falar de novos nomes?Novas óperas. Na presente temporada está já prevista a estreia de uma ópera de Luís Tinoco, com libreto de Luísa Costa Gomes, centrada na figura de Camões e, evidentemente, cantada em português.Na programação em curso?Exatamente. Este caminho deve ser prosseguido e eu creio que o português deve constituir um instrumento de aproximação entre países e entre instituições, numa perspetiva transnacional. São Carlos é membro da Opera XXI, associação que congrega as casas e festivais de ópera do espaço ibérico. Imagine um projeto construído a partir do mais ibérico dos escritores contemporâneos, José Saramago, associando, por exemplo, um compositor espanhol, um encenador português e um elenco misto, circulando pelos teatros de ópera desta nossa jangada de pedra... São Carlos deve colocar-se como instrumento de exportação da nossa cultura, e a língua portuguesa é um vetor fundamental nessa missão. Por outro lado, e saindo agora da geografia ibérica, o espaço da lusofonia deve potenciar projetos de recuperação do património lírico que, relembro, até 1822 é comum entre Portugal e o Brasil. Temos todas as condições para criar parcerias com as casas de ópera brasileiras - Manaus, Rio de Janeiro, São Paulo - e para construir projetos que envolvam artistas portugueses e brasileiros, unidos por uma herança cultural e por um património linguístico comuns.Essa é uma ambição sua ou é algo que o São Carlos já faz?É uma ambição minha, mas que vem na continuidade da participação de São Carlos nestas redes transnacionais, que tem sido muito promovida pela Dr.ª Conceição Amaral, como presidente do Opart.Falámos de levar a ópera para fora de Lisboa, para outros públicos. Mas muitas vezes também se diz que a ópera é cara. Sobretudo em grandes salas. Há soluções a nível de preços pensadas para atrair novos públicos?Tem de haver! Os responsáveis pelas pastas da Cultura vêm fazendo esse esforço. Mas eu penso que São Carlos tem de ter uma estratégia própria. Quando eu era estudante em Paris pude assistir a grandes espetáculos na Bastilha e na Opéra Garnier a preços absolutamente módicos, destinados a um público juvenil e académico. Temos de ser imaginativos e encontrar formas de criar uma paleta de preços que, sem perda de receita, nos permita atrair a São Carlos jovens, famílias e outros segmentos específicos.Sem perda de receita? Repare: dificilmente um mecenas aceitará atribuir a São Carlos um patrocínio de meio milhão de euros para a programação. Mas não creio que seja difícil encontrar um parceiro que aceite participar numa campanha destinada a determinado segmento, compensando a diferença de preço entre um bilhete inteiro e um bilhete-estudante, por exemplo: se, em 25 récitas, eu colocar à venda 50 bilhetes com um desconto de 20 euros cada, estamos a falar de 25 mil euros - o que pode ser muitíssimo atrativo para um patrocinador.Seja como for, uma ópera nunca é um produto barato, pelos cenários, pelos cantores, pelos músicos, também por todo o pessoal técnico altamente qualificado...Basta pensar que os corpos artísticos de São Carlos, entre Coro e Orquestra, são mais de 150 pessoas. E estamos a falar de excelência, porque só pode ser esse o nosso patamar. Pode fazer-se ópera de outra forma, mas não é essa a missão de um Teatro Nacional. Em Portugal tem havido um grande reflorescimento do espetáculo operático, mesmo no espaço comercial: ainda bem que existe e há espaço para todos! Um espetáculo mais comercial ou mais amador, ainda que de menor qualidade, estimulará uma parte do público a procurar, em São Carlos, a excelência. É para isso que trabalhamos