Na sequência do triunfo televisivo dos horrores do Big Brother, a mercantilização da intimidade familiar tornou-se um género corrente, vendido sem pudor em nome da “emoção”. Quando se trata de um ator/atriz, em especial se for de telenovela, as poses autobiográficas são muitas vezes matéria corrente de talk shows, alegremente pontuadas por muitos traumas de infância e algumas lágrimas obscenas... Enfim, por claro contraste, o mínimo que se pode dizer de Stiller & Meara: Nada Está Perdido (AppleTV+) é que Ben Stiller evoca os seus pais num tom que nada tem que ver com tais métodos, propondo um documento tão pessoal quando pedagógico em que as memórias familiares se cruzam com a revisitação de um tempo bem diferente do imaginário televisivo.O pai de Ben Stiller, Jerry Stiller (1927-2020), será o mais conhecido dos espetadores europeus, sobretudo através da personagem de Frank Constanza que interpretou na série Seinfeld (26 episódios no período 1993-98); mais recentemente, no cinema, vimo-lo, por exemplo, nas comédias Zoolander (2001) e Zoolander 2 (2016), ambas protagonizadas e realizadas pelo filho. Quanto à mãe, Anne Meara (1929-2015), embora com muitos pequenos papéis em cinema - incluindo a personagem de Mrs. Sherwood, a professora de inglês de Fame (1980), de Alan Parker -, foi também na televisão que viveu os momentos mais significativos da sua carreira. . A matéria fulcral do documentário de Ben Stiller é, justamente, a vida televisiva dos pais, isto é, do duo - Stiller & Meara - que os tornou muito populares junto dos espetadores americanos, sobretudo ao longo das décadas de 1960-70. De facto, como diz o título, “nada está perdido”, uma vez que Jerry era um obsessivo colecionador de memórias da família e, em particular, dos filhos: Ben e Amy Stiller (aliás, logo na abertura, Ben surge a explicar à irmã as suas ideias e hesitações na construção do próprio projeto).Ben Stiller tem à sua disposição uma quantidade imensa de registos de som (em cassetes) e imagem (Super 8) que ajudam a contar uma história que, sendo familiar, é também cultural. Afinal de contas, mesmo sem nunca terem tido um show regular, à maneira do par Lucille Ball/Desi Arnaz (evocado nesse filme admirável que é Os Ricardos, realizado por Aaron Sorkin em 2021), Stiller & Meara existiram como personagens visceralmente televisivas. Quase sempre em breves sketches (seis minutos no Ed Sullivan Show), através de diálogos tão certeiros quanto elaborados, o seu contagiante humor espelhou os valores, perplexidades e interrogações de toda uma época - no espaço social e na privacidade conjugal. .'Bugonia'. Redescobrindo o prazer da fábula .'Alpha'. Entre epidemias e assombramentos .'O Riso e a Faca'. À procura da Europa perdida