"Sou português. Mal posso esperar para visitar o país enquanto cidadão"

São quase oitocentas páginas a contar a história de Jerusalém, uma biografia que se destaca entre todos os relatos sobre esta cidade santa, de um autor mais conhecido pela sua dedicação à história russa. Se este volume foi uma boa surpresa da primeira vez em que foi publicado, em 2011, desta vez a reedição revista e aumentada tem outra, a sua origem sefardita e a ligação a Portugal.
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Simon Sebag Montefiore é um historiador lido em todo o mundo e os seus livros traduzidos para a língua portuguesa têm despertado um grande interesse. O melhor exemplo é a mais recente reedição de Jerusalém - A Biografia, que chegou ao primeiro lugar da tabela de não-ficção. Antes, já os seus ensaios biográficos sobre Estaline e os Romanov tinham tido uma leitura muito interessada no nosso país. Autor premiado e com um estilo que alia uma investigação profunda a uma redação sedutora, Montefiore dedicou muitos anos à narrativa sobre uma das principais cidades religiosas, com três mil anos de história e que continua a intrigar tanto os crentes como os curiosos devido à ligação religiosa que possui para com a maior parte da humanidade. Não será por acaso que sobre esta biografia disse: "Tenho a sensação de que passei a minha vida a preparar-me para escrever este livro. A minha abordagem não agradará a toda a gente; não convém esquecer que estamos a falar de Jerusalém. Que continua a ser o centro do mundo."

Na entrevista que concedeu ao DN, perguntou-se porque era tão diminuta a referência a Portugal, uma vez que só é feita numa única página, enquanto os portugueses continuam a questionar a sua participação nas Cruzadas. Pelo que responde, Montefiore terá uma surpresa para um tempo não muito distante: "Estou a estudar muito a história portuguesa neste momento. Adoro o seu passado e escreverei muito mais sobre isso muito em breve." Era impossível não questionar também o historiador sobre as suas origens sefarditas numa altura em que muitos judeus estão a obter, séculos depois da expulsão, a nacionalidade portuguesa. Como vê este "perdão" histórico? Responde: "Acho que é um gesto nobre e generoso por parte de Portugal e agradeço muito. Não se espera perdão nem se o pede, portanto, ao ser oferecido comprova um espírito generoso, que considero ser muito português e é muito bem-vindo." Não será por acaso que reage desta maneira, como se pode entender pela continuação da resposta: "Os meus antepassados sefarditas viviam em Portugal, daí que esteja muito entusiasmado por ter recebido a cidadania portuguesa. Posso agora também dizer que sou português". Acrescenta: "Estou muito orgulhoso e mal posso esperar para visitar o país enquanto cidadão."

No prefácio desta nova edição de Jerusalém - A Biografia escreve que "a cidade é alvo de um escrutínio mais intenso do que nunca". A sua biografia teve influência nessa atitude ou deve-se mais ao choque de civilizações em curso e próprio da nossa época?

A importância de Jerusalém deve-se na realidade a um livro especial: a Bíblia. Que se tornou o livro essencial do Judaísmo e da Cristandade e, claro, influenciou o Islão. É essa a verdadeira razão pela qual todos ainda estão obcecados com Jerusalém. Em muitos períodos da história - os reinos judeus, os tempos bizantinos, as Cruzadas, o Protestantismo, o Império Britânico - essa inspiração bíblica foi seminal. A criação de Israel foi, em parte, um reflexo dessa situação, bem como a atual reação contra Israel.

O título é Jerusalém - A Biografia ‏e não Jerusalém - Uma Biografia. Não duvida que seja o livro definitivo?

O meu objetivo era simples: escrever uma história completa de Jerusalém e da região que fosse acessível a todos os leitores. O que torna o livro mais entusiasmante é o facto de estar escrito da forma mais bela de que sou capaz, claro que também da maneira mais correta que é possível ao nível académico, e escolasticamente o mais atualizado possível. Acima de tudo, tão neutro quanto pode quem se proponha fazer um trabalho deste género. Encararemos a realidade: é a maior história de toda a história. Mas, por estranho que possa parecer, nunca ninguém o tinha feito antes. É verdade que existem muitos livros sobre o rei David, Jesus, as Cruzadas ou até o conflito Israel/Palestina. Mas não tudo no seu total como é o caso deste volume. Conheço um ou dois exemplos, mas quando os fui ler achei-os muito aborrecidos, além de serem muito repetitivos e repletos de clichês. Daí que tenha decidido escrevê-lo. Poderá considerar-se longe de ser perfeito, no entanto não há um livro de História definitivo sobre qualquer assunto. Designo-o como A Biografia porque até hoje nunca ninguém o fez desta forma.

O que mudou na sua investigação entre a primeira edição de 2011 e esta, revista e atualizada?

Principalmente pelo facto de se ter dado a chegada ao processo histórico de políticos como Obama e Trump, bem como de Bibi [Benjamin Netanyahu], de MBS [Mohammed bin Salman Al Saud], de Khameini e de Assad.

O facto de o livro ter sido traduzido em mais de 40 línguas proporcionou mais contestação ou críticas do que esperava?

Nem mais nem menos do que poderia esperar.

Até que ponto foi obrigado a "romancear" a narrativa de forma a captar a atenção dos leitores deste século XXI?

A esse respeito, há duas situações. Escrevo os livros que gostaria de ler. Então, pode dizer-se que só refletem o meu gosto... Confesso que os meus livros são escritos para mim. É claro que no caso deste livro, ele engloba assírios, otomanos, arménios, mamelucos, romanos, macedónios, ibéricos, núbios, mongóis, árabes etc. Ou seja, estamos perante muitos nomes e lugares estrangeiros, bem como ideias e dinastias diversas, daí que seja obrigatório tornar-se uma leitura interessante e da qual todos os leitores desfrutem. Por isso mesmo, esforcei-me muito para o tornar entusiasmante - o que não seria difícil visto que o assunto é deveras emocionante.

Foi mais fácil partir da ficção para História, como fez primeiro em Sashenka e Uma Noite de Inverno, ou o caminho inverso nunca o teria levado à atividade que o tornou conhecido?

Sempre fui um escritor de romances desde quando era jovem. O meu percurso podia ter seguido uma outra ordem, no entanto adorei escrever a trilogia de ficção sobre Moscovo - aliás, estes três romances foram publicados e lidos em muitas línguas. A história é uma área muito mais difícil, que exige um outro alavancar, muito mais denso. No entanto, devo dizer que seja qual for o género de livro, para que seja bom necessita de muito empenho por parte do autor.

Desde que começou a publicar que o acesso dos leitores ao livro se alterou em muito. O conhecimento da História tornou-se mais generalizado com o digital?

Sim, o conhecimento da História foi mais difundido, mas também de uma forma muito mais arbitrária. Embora tenha sido mais facilitado o acesso à informação, a Internet desencadeou o aparecimento de uma imensa quantidade de idiotas, muitos deles mal intencionados, e deu-lhes um palco mundial. É aquilo a que chamo de liga imbecil internacional! Em termos de história, significou o aparecimento de mais teorias da conspiração e de ideologias ignorantes e mais radicais. Por isso mesmo, considero que o verdadeiro conhecimento histórico é mais importante do que nunca, e uma boa história é cada vez mais fundamental: a história conta. Continuo a acreditar que a paz entre dois Estados [Israel e Palestina] é possível e necessária, contudo só pode acontecer se ambas as partes souberem compreender e forem capazes de respeitar as narrativas do passado de uns e de outros. É por isso que este meu livro pode ter alguma utilidade e também sei que todos os lados que convivem na região o leram. É aí que entra a importância da História.

Foi correspondente de guerra. Essa experiência jornalística influenciou-o ou foi a que o levou a tornar-se historiador?

Sim, foi de grande utilidade para mim. Estive em guerras após a queda da União Soviética, vi um império a cair e isso é uma situação muito útil para um historiador.

Jerusalém é a cidade onde três religiões lutam por um lugar. Até que ponto os mistérios de cada uma delas o influenciaram?

Respeito todas as religiões abraâmicas que veneram Jerusalém, daí que considere impossível escrever sobre religião a menos que se as respeite. Todas elas me influenciaram.

Será possível no futuro que uma destas religiões controle Jerusalém ou essa situação não interessa nem será possível?

Ao longo da história, sempre houve uma ou outra religião que controlou Jerusalém. Normalmente, essa religião impedia as outras de a adorarem. Assim sendo, em termos do percurso da história, a situação de hoje não é tão má como era durante a época dos Cruzados ou dos bizantinos.

O conflito entre Israel e a Palestina a que o mundo assiste irá fazer com que precise de atualizar mais uma vez a sua biografia?

Creio que pela próxima década, ou mais tempo ainda, isso não será necessário.

Concorda que o antissemitismo está a crescer ou não passa de uma forma fácil e passageira para os populismos arrebanharem eleitores?

Sim, está em ascensão e por todo o tipo de razões. Entre elas, porque o período de graça dos valores e do respeito verificado após 1945 deixou de existir.

Creio que é um "visitante" da Cidade Santa desde muito jovem. O que mudou no seu olhar entretanto?

Bem, muita coisa mudou. É uma cidade muito maior e muito mais rica. Também é uma cidade que está muito mais dividida entre israelitas e palestinianos.

Alguma vez a cidade - ou a governação dos homens - o desiludiu?

Jerusalém é o lugar mais requintado e o mesmo tempo o mais feio do mundo, ou seja, tanto no aspeto celestial como no do violento. Quanto à governação do Homem, essa é uma desilusão constante na maior parte das vezes.

Antes de Jerusalém, deu especial atenção à Rússia. Qual a "História" que mais o intriga?

Serei sempre um historiador da Rússia e do Médio Oriente - essas são as duas regiões do mundo que mais me interessam.

Interessar-se pela Índia ou pela China a este nível nunca foi um projeto?

Sim, a Índia e a China também me fascinam. Designadamente, o período de Mao, mas também as dinastias anteriores.

O seu livro Jovem Estaline era devastador para o protagonista. O que pensam dele os "fãs" que ainda proliferam na atual Rússia?

Creio que no que respeita à leitura, os fãs de Estaline, tanto na Rússia como na China, preferem o Jovem Estaline ao A Corte do Czar Vermelho.

O mundo olha para Putin como um "descendente" dos czares. É uma visão correta ou Estaline jamais terá nele um rival à altura?

Realmente, Putin tem uma ligação tanto aos Romanov - em especial a Nicolau I e Alexandre III - pois as suas opiniões são semelhantes às deles, e, claro, a Estaline. Não acho que Putin seja intelectualmente tão interessante como Estaline, além de não ser tão mau e assassino como Estaline. Contudo, diga-se que sobreviver no Kremlin durante duas décadas não é para qualquer um e, deste modo, tornou-se uma conquista de Putin.

Olha para as ameaças de um expansionismo da Rússia, como o que se observa a propósito da Ucrânia, como possíveis ou é uma interpretação manipulada pelas potências (EUA e União Europeia)?

Penso que a ameaça da expansão russa para os antigos estados que compunham a União Soviética é um perigo muito real.

Simon Sebag Moontefiores

Editora Crítica

828 páginas

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