Há trinta anos que se fazem exposições na Galeria 2 da Culturgest, e nunca ninguém se tinha lembrado de transformar as seis salas do espaço expositivo, cada uma delas separadas por degraus, em rampas. Sara Graça foi a primeira, sublinha Bruno Marchand, o curador da exposição Boa Good Sorte Luck, que abre portas ao público no próximo sábado, dia 22. Quando a artista, que vive em Londres, foi convidada para fazer esta mostra, a primeira coisa para que olhou foi para o espaço que lhe era oferecido, as tais duas linhas de três salas cada. “Há uma espécie de movimento descendente, entre a primeira e a terceira, e entre a terceira e a sexta. E comecei a ter vontade, de certa forma, de erradicar esse movimento dos degraus e torná-lo uma rampa. E isso também vem depois de pensar em coisas mais ligadas com instabilidade, movimentos não lineares. No fundo, as rampas têm uma função mais ou menos metafórica, mas também acabam por ser um gesto muito escultórico”, diz Sara Graça ao DN. .A artista, de 32 anos, diz que nesta exposição, a primeira a solo numa instituição cultural, quis usar “a linguagem da escultura, de como é que o volume ocupa espaço, de como é que o corpo humano se relaciona com o volume e ser mais ‘bruta’ nesse aspeto, de fazer uma coisa que até rompe com os limites do perímetro da sala”.A artista, de 32 anos, também dá importância ao facto de grande parte das rampas terem sido feitas com materiais desperdiçados. “Algumas destas placas vêm de paredes que foram deitadas abaixo para a exposição da Alexandra Bircken [na Galeria 1 da Culturgest], por exemplo. Esse tipo de coisas interessa-me. Sinto que vivemos constantemente a pisar coisas que estão em construção, a pisar uma tábua no chão que está a cobrir uma obra qualquer. Viver em Londres também aumenta essa sensação. É uma cidade muito acelerada. Interessa-me este olhar para o material que está em construção em vez de já estar construído.” .Ainda com a exposição a ser montada, na passada sexta-feira, dia 14, foi possível ver também plintos inclinados, objetos em cerâmica e manequins. “Tenho as rampas, depois tenho um conjunto de plintos inclinados com ovos de cerâmica, que eu vejo como uma espécie de multidão de figuras em estado precário, quase de queda. E alguns destes plintos fazem ligação formal a caixas de mudanças, têm abas e têm as pegas, parecem aquelas caixas de cartão de mudanças. Esse é um elemento que é constante na exposição.”Nas esculturas e também nas fotografias que mostra pela primeira vez, Sara Graça aponta para os problemas da sua geração, com as dificuldades em arranjar emprego estável e casa. “Esta ideia das rampas, de estar virada ao contrário, de subir e descer, da sensação de estar tudo meio em construção, não terminado, os plintos inclinados, é uma espécie de exercício de equilíbrio, um balancing act, quase um circo. Tem a ver com todas as conversas que eu tenho com pessoas à minha volta. Estou à procura de um trabalho outra vez, estou à procura de casa outra vez…” .O próprio título da exposição Boa Good Sorte Luck remete para essa situação. “A única coisa que posso dizer é ‘boa sorte’. Lá está, parece que não há garantias de nada. Parece que temos de viver muito nesta ideia de... temos de ter sorte”. A artista explica que a escolha do título Boa Good Sorte Luck - que descreve como "meio trava-línguas" - tem também a ver com o facto de ser "uma expressão muito comum. E eu gosto também de pegar em coisas que são comuns e que não é preciso explicar muito". Além disso, acrescenta, "este trocadilho vem do facto de eu viver entre línguas. Vivo em Inglaterra e trabalho aqui. A minha vida está nos dois sítios".Sara Graça viveu em comunidade, em situação de ocupa, em Londres, durante o Erasmus e mestrado nas prestigiadas escolas Central Saint Martins e Goldsmiths College. Ela não romantiza a experiência, mas admite que se reflete na sua arte. “Ganhei competências de improvisação, de ter confiança em resolver problemas sem ter de chegar a uma ideia de perfeccionismo. E gosto de olhar para o trabalho artístico dessa forma. Como uma espécie de processo de resolução de problemas e de improviso.” .Sara Graça é uma aposta de Bruno Marchand, programador de Artes Visuais da Culturgest, que destaca a forma com a artista se “reinventa a cada nova obra, a cada novo projeto”, e vê, mais recentemente, “uma tendência para olhar para as margens e para questões que têm muito a ver com aquilo que a geração da Sara Graça está a viver, nomeadamente a questão da precariedade, da crise da habitação e da ideia de trabalho, que mudou muito”, diz ao DN.A artista "recorre muito a materiais que já foram usados, a materiais descartados, a materiais muito baratos e acessíveis", sublinha Bruno Marchand. Além disso, aponta o curador, "há uma reflexão muito particular sobre a ideia de se viver em casas partilhadas e trabalhar em estúdios partilhados porque não se pode pagar o próprio espaço, e depois ser confrontado com 700m² de exposição para ocupar numa instituição em Lisboa. São dois mundos em confronto. Como é que se negocia esta circunstância de não ter espaço para produzir obras para ocupar um espaço de 700m² numa exposição", questiona.Em relação às rampas que Sara Graça criou, o curador sublinha que elas não tocam na estrutura, o que é uma abordagem diferente. "Parece um pormenor, mas é um pormenor importante, porque, na verdade, não tocando na estrutura, elas são esculturas mais do que estruturas arquitetónicas. E isso é muito interessante, é como fazer uma escultura que abarca o espaço todo, mas que não se transforma em arquitetura. .Para Bruno Marchand, Sara Graça tem “um percurso já sólido o suficiente para fazer esta apresentação”. A ideia, revela, é “ajudar a consolidar um percurso nacional e internacional, porque esta exposição, se tudo correr bem, circulará para fora. Nós temos um programa de apoio especificamente vocacionado para a internacionalização, e a Sara é a primeira artista a recebê-lo.”O projeto é o "Widening Circles" e tem como objetivo ajudar artistas nacionais a divulgar o seu trabalho. Em relação à exposição Boa Good Sorte Luck, que pode ser vista na Culturgest entre 22 de novembro e 22 de fevereiro de 2026, a ambição é levá-la a Londres. "Temos dois anos para encontrar parceiros que possam receber a exposição, uma exposição adaptada, uma vez que ela tem muito a ver com este espaço, a outra será necessariamente diferente. Mas este projeto de apoiar a Sara num primeiro grande momento de exposição institucional vem com esta hipótese de internacionalizar a sua presença, e esse é um dos trabalhos que nós queremos começar a fazer com mais consistência", diz Bruno Marchand. .Pedro Casqueiro e o “desvio” antológico que às vezes é mais modernista do que pós-modernista.Carlos Bunga: “Foi uma exposição em que deixei a pele, por ser o meu país, por ser um regresso”