Revendo Kleist em cenário português
Em A Criança, produção luso-francesa, um conto de Heinrich von Kleist surge "deslocado" para Portugal, em meados do século XVI: uma ousadia interessante, ainda que não totalmente controlada.
De que falamos quando falamos da adaptação de um texto literário a cinema? Pois bem, de uma infinidade de contrastes. De tal modo que os resultados não dependem das qualidades da inspiração. Exemplo? Redescubra-se o fulgor de Anna Karenina, com Greta Garbo, em 1935, sob a direção de Clarence Brown, e compare-se com o pitoresco "experimental" da versão do romance de Tolstoi que Joe Wright assinou em 2012...
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Com A Criança, os realizadores Marguerite de Hillerin e Félix Dutilloy-Liégeois (estreantes na longa-metragem) arriscaram muito para lá do convencional: trata-se de adaptar um conto do alemão Heinrich von Kleist (1777-1811), "deslocando" a respetiva ação para uma zona próxima de Lisboa, em meados do século XVI, quando, de acordo com o dossier de imprensa, "o apogeu de um poder que a expansão trouxera começa a esboroar-se, ao mesmo tempo que se instala a rigidez de uma Inquisição cada vez mais prepotente." O filme resultou, aliás, de uma coprodução Portugal/França, da responsabilidade de Paulo Branco, com um elenco que inclui, entre outros, Grégory Gadebois, João Arrais, Maria João Pinho, Alba Baptista, Loïc Corbery, Inês Pires Tavares e Albano Jerónimo.
Convenhamos que, com ou sem mudanças de geografia, o conto de Kleist é uma peça "impossível" - por isso mesmo fascinante - de transformar em narrativa cinematográfica (está publicado com o título O Órfão, numa tradução de José Maria Vieira Mendes, no nº 12 da revista "Ficções", com direção de Luísa Costa Gomes). A sua cavalgada dramática, administrada por uma escrita da mais fria "objetividade", apela a uma encenação em que o inusitado dos acontecimentos surja como um corte sistemático das relações "naturais" entre as personagens.
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Nicolo, o herói de Kleist, tem agora o nome de Bela (João Arrais). Ele é "um jovem adotado que tenta encontrar o seu lugar numa família livre, mas enclausurada num mundo onde as sombras têm a claridade das imperfeições." Infelizmente, o filme tem dificuldade em começar por nos apresentar as personagens, apostando numa rede de informações incompletas e subentendidos que, em última instância, limitam o labor específico dos atores. Alguns conseguem compensar tais limitações com o seu talento (é o caso de Maria João Pinho); a outros esse talento não basta para superar o esquematismo das respetivas personagens (acontece com Albano Jerónimo).
É pena, porque podemos pressentir que todo o projeto foi motivado pelas contradições das personagens e, em particular, pela tensão entre o artifício dos laços sociais, políticos e religiosos, e a exuberância de uma Natureza (com maiúscula!) que parece existir como uma utopia que já ninguém reconhece - importante, por isso, o brilho (literal e simbólico) da direção fotográfica de Mário Barroso. No seu melhor, A Criança conduz-nos a um mundo assombrado por protocolos que, em última análise, mascaram as relações entre os humanos - será essa, talvez, a mensagem intemporal que nele se procura partilhar com o espetador.

dnot@dn.pt
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