Consagrado com o Grande Prémio do Júri (Leão de Prata) do Festival de Veneza de 2024, Vermiglio, escrito e realizado por Maura Delpero, apresenta-se como um legítimo herdeiro da multifacetada tradição realista que pontua toda a história do cinema italiano. Certamente não por acaso, as suas memórias dos tempos da Segunda Guerra Mundial têm suscitado a evocação de referências como Ermanno Olmi e os irmãos Taviani, sem esquecer os nomes emblemáticos de Roberto Rossellini ou Vittorio De Sica e o seu labor no interior do período neorrealista. Por um lado, tais referências surgem como inevitáveis, quanto mais não seja porque o trabalho de Delpero possui as mais básicas virtudes de um cinema cujo dramatismo nasce da articulação das histórias individuais com as convulsões coletivas. Por outro lado, estamos perante um estilo metodicamente “descritivo” cuja coerência formal, algo formalista, fica aquém da vibração (realista, justamente) daquela tradição - para nos ficarmos por um contraste esclarecedor, veja-se ou reveja-se a obra de Olmi, sobretudo em títulos emblemáticos como O Emprego (1961) ou A Árvore dos Tamancos (1978).O mais interessante decorre da aposta em construir uma ambiência dramática em que a ancestral harmonia do lugar - Vermiglio, uma aldeia esquecida nos confins dos Alpes italianos - surja espelhada e, mais do que isso, desafiada através das dinâmicas de uma família, chefiada pelo professor local, subitamente abalada pela chegada de um jovem soldado que desertou. Aliás, o facto de esse soldado ser originário da Sicília desenha uma barreira existencial que se reflete, em particular, através do misto de curiosidade e estranheza manifestado pelas crianças.Quando a filha mais velha e o soldado se apaixonam, tudo se passa como se os valores da própria família não tivessem capacidade de resposta para lidar com o destino que tal paixão parece arrastar. O que introduz uma interrogação perturbante - as personagens procuram esse destino ou são esmagadas pelas suas peripécias? - que o filme evita explorar da forma mais aguda, tentando salvar uma réstia de esperança e melancolia.Para lá dos resultados práticos de Vermiglio, a sua vontade realista reflete um fenómeno transversal a muito cinema contemporâneo que, uma vez mais, importa sublinhar. A saber: a importância do combate (narrativo) que se vai travando entre a formatação televisiva de muitas opções de tratamento das memórias históricas e a procura de modelos alternativos de abordagem dessas mesmas memórias - com resultados diversos, a produção cinematográfica italiana continua a ser um espelho desse combate e dos seus contrastes. .'Marcello Mio': O cinema, o ator, a sua filha e o filme dela.Revisitando o fado e as suas identidades