Na avalanche de imagens que consumimos — as que queremos ver, as que tentamos evitar, as que nos são impostas —, a representação da intimidade, mais do que uma opção estética, tornou-se uma verdadeira questão cultural. Tal representação passou a estar contaminada pelo simplismo moralista das telenovelas e, no limite mais obsceno, pela grosseria humana do Big Brother televisivo. Daí a atualidade de um filme tão subtil como Pequenos Clarões, da espanhola Pilar Palomero.Evitemos os rótulos automáticos. Não se trata de dizer que estamos perante “a” boa representação da intimidade. O que aqui encontramos decorre do reconhecimento de que nenhuma representação é unívoca ou definitiva. Devemos falar no plural (intimidades) e começar por sublinhar que a realização de Palomero — também autora do argumento, tendo como base uma história de Eider Rodríguez — procura encontrar o caminho (in)certo, sempre sedutor, de um realismo que se aproxime dos sinais mais secretos das personagens, evitando reduzi-las a estereótipos do que quer que seja.A trama dramática de Pequenos Clarões estaria, de facto, ameaçada por um desses estereótipos: a abordagem moralista dos cuidados paliativos. Como bem sabemos, trata-se de um assunto suficientemente delicado — genericamente, o acompanhamento de pessoas com doenças graves, por vezes em fase terminal — para não poder ser reduzido a uma visão “piedosa”, típica de muitos talk-shows.Passado e presenteHá no filme de Palomero uma personagem, Ramón (Antonio de la Torre), gravemente doente. Com uma nuance narrativa: o filme não é exatamente “sobre” ele, ou melhor, a história não parte dele, já que é o contar da história que a ele nos conduz. Como? Através da personagem de Isabel (Patricia López Arnaiz), sua ex-mulher, de quem tem uma filha, Madalen (Marina Guerola) — separaram-se há 15 anos e Isabel tem agora Nacho (Julian López) como companheiro. Quando Madalen pede a Isabel que visite o pai, dir-se-ia que as pontas soltas do passado se reorganizam (ou desorganizam), transfigurando o presente com memórias fragmentárias, amargas e doces. .Pequenos Clarões é um filme que encena uma situação de cuidados paliativos sem nunca ceder a qualquer facilidade "piedosa".Daí um assombramento que toca tudo e todos. O seu motor é a doença de Ramón, com um ponto de fuga situado na indizível nitidez da morte. Seja como for, o filme não existe condicionado por tal nitidez, pelo tempo que a sua espera envolve — a vida afirma-se, expande-se, como se fosse, apesar de tudo, contra a própria morte, uma promessa de eternidade. As cenas dos breves passeios de Isabel e Ramón, onde “nada” acontece, são, assim, marcas específicas, de comovente contenção, de uma arte que conhece o valor da duração, dessa ambiguidade em que o cinema parece reinventar as medidas do próprio tempo.Sem espalhafato formal, sem sublinhados redundantes, tudo isso decorre de uma ética cinematográfica que, uma vez mais, importa celebrar. O seu mecanismo central é, também uma vez mais, o trabalho dos atores. É através deles que passa uma fundamental diferença: a que se desenha entre o estatuto social ou familiar de cada personagem e a sua função no interior de uma dinâmica de factos e afetos que, em última análise, cada ser humano está a descobrir. . O destaque vai necessariamente para Patricia López Arnaiz, compondo a personagem de Isabel a partir da ambivalência que nasce entre aquilo que ela sabe ou julga saber e as recordações que talvez parecessem impossíveis de reencontrar — nesta perspetiva, Isabel é uma presença intensamente feminina que nunca se confunde com qualquer lugar-comum “feminista”. Sem esquecer que Antonio de la Torre possui a arte e o engenho para interpretar Ramón de modo a que a fragilidade do corpo não anule a energia da sua singular presença no ecrã.Made in SpainRecentemente apresentado no LEFFEST, num ciclo intitulado “Um novo élan do cinema espanhol”, Pequenos Clarões (título original: Los Destellos) serve de testemunho da vitalidade de alguma produção espanhola recente, refletindo ao mesmo tempo, paradoxalmente, a limitada presença dessa produção nas salas portuguesas.Claro que há exceções — penso, por exemplo, na estreia recente de Sirât, de Oliver Laxe, naturalmente sustentado pelo Prémio do Júri obtido em Cannes (partilhado com Sound of Falling, da alemã Mascha Schilinski). Seja como for, persiste uma relação deficitária com o cinema que se faz “aqui ao lado”, e tanto mais quanto o volume de títulos gerados pela indústria espanhola não deixa de ser impressionante. Segundo dados publicados no site Cineuropa [cineuropa.org], em 2023 a Espanha produziu 375 filmes, 298 inteiramente nacionais, 77 em regime de coprodução. Pequenos Clarões é apenas um sintoma (dos mais belos, por certo) dessa dimensão..Falar de sexo dá muito trabalho.O espaço e o tempo do rap crioulo