Rafaela Ferraz teria cinco anos de idade quando entrou pela primeira vez na capela dos ossos de Évora. Levavam-na os pais. “Nunca na minha família me foi barrado nenhum tipo de curiosidade”, recorda. E quando se interessava por temas como fantasmas, não era desencorajada - “até espicaçada”, acrescenta. Décadas volvidas, esta avenida aberta ao saber acabaria por tomar uma direção profissional e objeto de escrita. Rafaela é investigadora independente, formada em Criminologia e mestre em Medicina Legal pela Universidade do Porto, cidade de onde é natural. Assim se traça brevemente o currículo. Aos escaparates, Rafaela entregou recentemente o seu livro Portugal de Morte a Sul, numa edição da Quetzal. A autora coassinara antes, em 2022, a obra Death and Funeral Practices in Portugal. O livro de 2025 deixa antever os cenários de onde verte a escrita da autora: percorre cemitérios, capelas de ossos, museus de anatomia e espaços de culto. Da sinopse à obra subtraímos outros propósitos: “Algures entre o guia de viagens e o ensaio sobre a mortalidade”. Das primeiras páginas apropriamo-nos de algumas frases: “Passo muito tempo em cemitérios, a fotografar sepulturas, a memorizar nomes que passaram à história (...) gosto de ler os testamentos dos ilustres que encontro em passeios por cemitérios vários”. O livro assenta numa pergunta a pedir-nos uma multitude de reflexões: o que fazemos com os mortos? A obra nasce também de um acervo que é património literário da autora: “Já conhecia os locais, revisitei alguns para avivar a memória. Tinha um panteão de histórias sobre corpos, sobre indivíduos, sobre os contextos que levam esses indivíduos a estar em exposição num museu, numa igreja, numa capela. Sentia que havia um fio entre as histórias: a exposição de mortos que ainda estão entre nós. Também investigara antes a fundo”.O livro de Rafaela traz à introdução uma memória familiar, a avó, que via a morte como presença quotidiana, em acidentes domésticos evitados por pouco ou doenças que sibilavam, sem se concretizarem. “Tratavam-se por tu, a minha avó e a morte”, enfatiza a investigadora na conversa informal que mantemos ao correr dos temas do livro. Sentamo-nos sob a fronde dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Horas antes, Rafaela aproveitara a sua presença na capital para percorrer as veredas do Cemitério dos Prazeres. “Não penso muito na morte. Já nos mortos, penso bastante”, declara a nossa interlocutora.A licenciatura em Criminologia surgiu na vida de Rafaela Ferraz “quase por acaso. Foi uma escolha feita um pouco às cegas, depois de Ciências Sociais no secundário. Entre as opções, escolhi a que me parecia mais interessante. Era um curso novo na Faculdade de Direito do Porto”. A experiência acabou por ser decisiva. “A Criminologia é um mundo. Cruza psicologia, sociologia, urbanismo na forma como os espaços são desenhados para prevenir o crime. Abriu-me a mente, criou empatia e o esforço de ver a posição do outro - criminoso, vítima ou cadáver”.A tese de mestrado em Medicina Legal encaminhou Rafaela para as práticas funerárias emergentes. “Lá fora fala-se e legisla-se sobre compostagem humana e cremação líquida [aquamação]. Em Portugal, a legislação prevê apenas inumação, ou seja, o enterro e a cremação em crematório. A compostagem humana prende-se à tentativa de tornar a morte mais verde, mais próxima da natureza. No entanto, se pensarmos objetivamente, uma empresa privada que me oferece compostagem humana, não está a oferecer-me nada substancialmente diferente daquilo que o enterro na terra, numa mortalha de algodão ou de linho, me oferece. Aliás, essa é uma prática comum noutras culturas, noutras religiões”. A criminologista sublinha: “Tenho receio que a inovação venha mais de interesses económicos do que espirituais”. Cadáveres visíveis, cadáveres ocultosTema grato à autora prende-se com a forma como o espaço dos vivos coabita com a presença dos mortos. “Hoje tudo está em recipientes: este é o espaço dos vivos, este é o espaço dos mortos. Encontramo-nos para o velório e para o funeral, mas cada vez menos e por menos tempo”. Para a autora, o afastamento da morte física corresponde a um desconforto crescente perante a decomposição. “A decomposição é violenta, mas é real. Faz parte do que somos. Hoje estamos isolados desse lado da morte e até da vida. Faz-nos impressão uma ferida, o pus, uma crosta”.Em cemitérios, o corpo é tornado invisível. “No cemitério, não vemos corpos. Estão escondidos em jazigos ou caixões. São invisibilizados. No fundo, aquele é o bairro que designamos para os mortos, mas não os vemos. Embalsamamos os defuntos para que pareçam vivos, aplicamos cosmética funerária pois queremos que pareçam em repouso, como no século XIX, quando a ideia do sono eterno era central”. Há uma frase que baila com força no livro de Rafaela, uma citação que a autora vai buscar ao antropólogo João de Pina-Cabral: “Ter um corpo é uma característica dos vivos”. A autora acrescenta: “Os mortos têm corpo, mas a nossa postura contemporânea no mundo ocidental em relação a eles é afastá-lo o mais rapidamente possível”.Esta ocultação tem também expressão arquitetónica. Ferraz recorda-nos os “cemitérios repletos de barreiras físicas” - muros, grades, tampas - que separam vivos e mortos. Questiona se se trata apenas de higiene moderna ou se revela um desconforto coletivo mais profundo. O cemitério é continuidade da cidade e das suas hierarquias: há avenidas principais, jazigos de família, campas rasas. Os espaços de morte, nota, refletem estatuto e exclusão. “Percebi que os cemitérios não são apenas espaços de luto - são uma montra da sociedade da época. Vemos as mansões dos falecidos, mas não o equivalente a um apartamento de renda acessível”. A morte, conclui, também reproduz hierarquias sociais. Portugal de Morte a Sul também revisita práticas como a exumação e a reacomodação dos ossos, comuns em Portugal até meados do século XX. Hoje, sublinha a autora, essas tarefas estão afastadas das famílias e entregues a profissionais, o que alterou a relação com o cadáver. “O que mudou mais foi a intimidade”, observa, lembrando que antes era normal manipular restos mortais de parentes. Agora, o afastamento higiénico reforça a separação entre vivos e mortos.Nas capelas de ossos a situação da mostra dos corpos é oposta. “Ali, os ossos estão expostos em comunidade, sem identidade. São material decorativo, se assim podemos dizer”. A mesma ambivalência é visível nos museus. “O Instituto de Anatomia aqui em Lisboa tem dentro de um frasco uma mão diafanizada, praticamente transparente, que permite ver vasos sanguíneos, ligamentos, tendões. No entanto, é a mão de alguém e, tal como a mão do santo, é venerada pelo seu valor”.Casos como a cabeça de Diogo Alves [o denominado “assassino do Aqueduto das Águas Livres”], preservada em frasco, mostram como a proximidade física altera a perceção. “A popularidade da história assenta no facto de ser uma cabeça e não um crânio. Uma cabeça num frasco cria outra proximidade, sentimos contacto. Hoje acredita-se que o que resta é apenas o crânio ósseo, mas a narrativa é difícil de desmontar”.A exposição de restos humanos é um ponto de tensão. “A questão é ética. Ver o corpo de alguém, de há 50 anos ou três mil, é um privilégio, mas com custo. O corpo pode ter sido retirado de uma comunidade ou cultura. O privilégio justifica o custo?” Crianças e fetos impressionam mais, sublinha Rafaela Ferraz, por despertarem empatia imediata. Mas a questão permanece: “À custa de quem desenvolvemos essa empatia?”O debate estende-se às exposições de plastinação, como Body Worlds, que transformam cadáveres em espetáculo. “Se me dissessem que todas as pessoas que estão naquela exposição consentiram em ser plastinadas após a morte, sabendo o teor das mostras e sabendo que é um espaço de entretenimento, a minha reserva ética diminui significativamente. No entanto, há esta nuance, pois enquanto visitantes não sabemos se houve esse consentimento. É uma questão complexa”. A própria linguagem também molda a perceção. “Prefiro não usar a palavra ‘múmia’, porque transforma a pessoa em objeto. ‘Vi múmias no museu’ soa a categoria de coisas. Mas cada múmia é um indivíduo”. O vocabulário pode humanizar ou apagar os mortos. Entre turismo e patrimónioPortugal de Morte a Sul pode ser lido como roteiro, mas a autora rejeita a ideia de um mero guia para o turismo macabro. “Prefiro ver estes espaços como património dissonante: criam tensão entre o que mostram e o que representam. Uma mão num frasco é um item de museu, mas também pertenceu a alguém. Em teoria, é possível identificar turismo negro quase em qualquer lugar: numa casa centenária, num palácio - em ambos morreram pessoas. Mas nem toda a presença do passado mortal transforma automaticamente um sítio em destino de turismo negro”. O que pretende é reflexão, não espetáculo. “Se provocar reflexão, não me incomoda”. Em simultâneo admite que esse interesse pode ser oportunidade para revalorizar património esquecido, desde que tratado com rigor.Entre os exemplos que analisa está a capela de Santa Maria Adelaide, em Arcozelo. “É lá que estão guardados os seis mil vestidos de noiva, oferecidos ao longo de décadas por mulheres recém-casadas, em agradecimento pelas graças concedidas.” O corpo da santa permanece exposto e intacto, num altar que continua a receber visitas. Outro caso é o dos museus de antropologia e história natural, que expõem corpos de fora das comunidades locais. “O que faz uma cabeça-troféu da Amazónia em Coimbra, ou um indivíduo egípcio em Lisboa? Surge a questão da restituição e repatriação, sobretudo em contextos coloniais, como Moçambique. Aceitamos os conceitos, mas raramente aplicamos. É um debate presente e necessário.”Outra camada prende-se à presença de figuras históricas e literárias que atravessam o livro. Médicos-legistas que ajudaram a fundar práticas forenses, poetas que refletiram sobre a finitude, homens e mulheres santos que desafiaram a decomposição. Esse mosaico mostra, sublinha a autora, que a morte não pertence a uma disciplina isolada: é simultaneamente matéria científica, experiência espiritual e tema artístico. É também arquivo social, capaz de expor desigualdades com clareza brutal. Além da escrita, a autora mantém projetos paralelos, como o “Museu das Pagelas”, arquivo digital de pagelas fúnebres. “Comecei a colecionar por acaso, mas percebi que não havia estudos sobre essas peças. Quero dar densidade à coleção para gerar conhecimento. Continuo a digitalizar e a publicar”. A base de dados pode vir a ser útil em genealogia e no estudo de práticas funerárias pouco analisadas.Na entrevista, admite a dificuldade em conciliar método e emoção. “Foi difícil aceitar essa emoção sem a ver como fraqueza analítica”. Com o tempo, percebeu que a comoção não comprometeu a análise - antes a completou..“Para alguns leitores americanos, um livro sobre Pieds-Noirs da Argélia é como uma coisa do séc. XII”.“D. Manuel I acabou por ser o primeiro soberano com poder à escala global”