"Queriam falar comigo porque era princesa, agora é por causa deste livro"

A Duquesa de York já publicou sete dezenas de livros, a maior parte para o público infantojuvenil. Desta vez, lançou-se na aventura de escrever um romance que retrata uma antepassada, Margaret, que tem muito a ver com Sarah Ferguson.
Publicado a
Atualizado a

Não é todos os dias que um membro da Família Real escreve um romance de quase 500 páginas e aceita dar entrevistas sobre o livro. Aliás, as regras para a entrevista a Sarah Ferguson (n.1959), a Duquesa de York, eram bastante rígidas: não fazer perguntas sobre a Família Real, sobre os duques de York (a autora e o príncipe André), os duques de Sussex (príncipe Harry e Meghan Markle); a exceção era para uma questão sobre o recente Jubileu de Isabel II. Por outro lado, eram bem-vindas as que dizem respeito às suas ocupações filantrópicas e de solidariedade para com os refugiados da Ucrânia, bem como para o seu trabalho junto dos desfavorecidos na Polónia e Croácia. No entanto, não evitou evocar na conversa Lady Di e a "terrível pressão da imprensa", nem as polémicas que criou junto da Família Real Britânica durante o casamento com o terceiro filho de Isabel II, que durou uma década - entre 1986 e 1996 - e ao separar-se do príncipe André - com quem continua a viver.

O romance tem por título Onde Me Leva o Coração e, mesmo que passado no século XIX, faz com que a protagonista lembre sempre ao leitor que a autora também tem na sua vida um passado conturbado que a tornou uma figura pública bastante do agrado da imprensa tabloide inglesa, sendo capa de jornais e de revistas frequentemente. Em Lisboa, optou por ser a escritora e tentar passar ao lado da Duquesa de York, mesmo que o título esteja bem visível na capa do livro. Mas não esqueceu os hábitos da Família Real, como o de não despir o casaco para estar mais à vontade num dia tórrido: "Nunca o tiro, é a regra", respondeu de imediato. Aliás, não era um o casaco que trouxe para a maratona de entrevistas que tinha marcadas, podendo ver-se por perto no grande salão Rei Luís XVI do Hotel Pestana, na Ajuda, uma mala com várias mudas de roupa bem engomadas, ao lado um cabide onde repousavam as peças com que já fora fotografada, bem como um pequeno salão de maquilhagem, que refazia antes de cada encontro, e até algumas prendas para oferecer aos jornalistas.

A protagonista do romance chama-se Margaret e é inspirada numa familiar, a quem se refere sempre como "Lady Margaret", cujo nome também faz parte do seu. E, tal como a lady que retratou, considera que não tem direito a ser "complacente" ou a arrepender-se do rumo que ambas as vidas levaram. Há também duas outras semelhanças: a antepassada é ruiva e com sardas e tanto uma como a outra procuram um caminho que as leve à "redenção". No caso de Lady Margaret, o de ter-se oposto ao casamento organizado pelos pais com um homem mais velho que lhe causa repulsa, seguindo um percurso de vida bem diferente da que se esperava de uma figura da aristocracia britânica daquela época. No caso de Sarah Ferguson, num paralelismo com as intrigas publicadas na imprensa na época da protagonista, como as que a duquesa se confrontou décadas mais tarde.

Publicado o romance, considera que passou a ser olhada de outra forma e que alterou o seu perfil público. Daí que não tenha dormido sobre esta "redenção literária" e já esteja de volta de um segundo romance. Como este não tem sexo - "o único sexo é o beijo!" -, disse que o próximo faria de "50 Sombras de Grey um passeio pelo parque". Não é verdade, esclarece: "Como me perguntam sobre o que será e reclamam de não haver sexo neste, eu disse isso para os calar. O meu próximo livro é como se Katharine Hepburn encontrasse Cary Grant! Tem como protagonista uma irmã de Lady Margaret, que se torna detetive. Revela que a história tem um fundo de verdade e mostra também a dificuldade de se ser mulher nessa antiga sociedade.

Se por momentos está aberta para recordar algumas passagens da sua vida como membro da Família Real, para Sarah Ferguson há um assunto, a série The Crown que retrata a vida de Isabel II e a dos que lhe estão próximos, sobre o qual nada diz. Também só se lhe escuta uma vez o nome do ex-marido, André, preferindo comentar a bandeira da Ucrânia que traz na lapela, as filhas e os netos, que começaram a nascer, ou saber detalhes sobre o Terramoto de 1755. Uma curiosidade que poderá satisfazer quando regressar a Lisboa para estar na Feira do Livro.

Vamos à pergunta que todos fazem: o que tem este romance de autobiográfico?
Creio que a resposta é sim. É um romance sobre as experiências da minha vida e também da minha inexperiência face a certas situações que surgiram, de que resulta um livro muito forte. Posso garantir que vivi todas as linhas que escrevi, não por as ter personificado mas por as sentir e estar dentro delas.

A sua antepassada Margaret é uma jovem ruiva e com sardas, ou seja, fisicamente têm várias semelhanças. Era mesmo assim ou transformou-a?
Era exatamente assim e daí eu a ter escolhido como protagonista do livro. Temos vidas parecidas no que respeita a desafios... posso dizer que até hoje nunca percebi porque ainda estou por aqui; sou muito forte, mas tem sido uma jornada muito dura e sempre sob o escrutínio da opinião pública. Muitos, mesmo muitos, jornalistas ingleses estiveram sempre atentos para com a minha vida e eu levei tudo a peito. Hoje, acho que muitas vezes olhava o que publicavam como se fosse um ataque pessoal, mas não era isso que acontecia, apenas queriam vender jornais com aqueles títulos em letras grandes e vermelhas. Daí que a minha vida tenha sido essa jornada difícil, no entanto estou muito entusiasmada por ser capaz de me apresentar como escritora e acreditar que posso ter iniciado uma nova carreira.

Olha para este romance como um novo princípio?
Com certeza, além de que estou a adorar esta minha faceta. Quando há uns tempos descobri que no meu íntimo ainda estava viva, comecei a procurar na história da minha família a existência de uma outra ruiva como eu - uma justificação para os genes que herdei - e encontrei no século XV a presença na Irlanda de um lorde que era familiar de Lady Margaret. Isso foi muito importante, pois mostrou-me a herança do sangue celta da Escócia, entre outras coisas. Por exemplo, uma das realidades que sempre me caracterizaram foi a humildade e queria saber de onde vinha essa forma de ser, até porque os meus antecessores eram muito corajosos no campo de batalha. Essa busca levou-me até à primeira rainha Isabel, que era ruiva, e mostrou-me que o mais importante era a honra, daí que acredite que esses genes continuam no meu sangue, o que me orgulha bastante. A família de Margaret fez-me depois encontrar o lugar para as minhas crenças e valores morais.

Citaçãocitacao"Era muito, muito complicado, ter mão no seu destino, mas ela foi capaz. No meu caso, foi mais fácil. Eu adoro a Rainha, adoro tudo aquilo, adoro o André, adoro quem eu sou, de quem descendo e o que faço."

Este romance ocupou-lhe quinze anos. Porquê tantos?
A primeira razão foi a de eu ter perdido a confiança em mim mesmo. Eu queria escrever esta história e senti que necessitava de uma aprendizagem mental para compensar os passos errados e, subitamente, ganhei a coragem suficiente para pedir ajuda. O meu editor nova-iorquino deu-me essa resposta, ajudando bastante.

E como foi a receção da crítica?
Foi muito boa, melhor do que a esperada, porque achei que mais não seria do que a habitual forma negativa de me retratarem - não foi o que aconteceu. Por essa razão, estou à espera de que o próximo livro ainda corra melhor.

O livro tem uma qualidade: conta uma história. E fá-lo de uma forma que desperta a curiosidade do leitor. Foi difícil encontrar tantas reviravoltas inesperadas?
A minha filha Beatrice disse-me "Mãe, eu achei que ela ia casar com um e isso não aconteceu". Ela não esperava a minha solução, mas gostou do que eu decidi. Não aceitei a hipótese de dar um fim ao livro com um desfecho mais esperado ou mesmo o da vida real - Lady Margaret casou-se muito tarde. Queria que cada personagem do romance correspondesse a pessoas de verdade na minha família.

Sente-se que está magoada com a atenção da comunicação social dada à sua vida. Teve de ignorar esse sentimento quando começou a escrever?
Por completo. Isso percebe-se, creio. Este livro foi uma fuga a essas notícias e agora tenho um valor que ninguém me pode retirar e um lugar onde me resguardar. Dentro da minha cabeça, e no coração, já ninguém pode entrar. Até porque nem se eu fosse a rainha de Inglaterra, nenhum editor publicaria este livro se não tivesse algum valor. Portanto, não vale a pena enganar-me desta vez como já o fiz noutras vezes. As pessoas queriam falar comigo porque eu era uma princesa, desta vez é por causa do livro, vem diretamente do meu trabalho.

Esta não é a primeira vez que publica!
Não, antes tinha escrito dois livros de História, que me ocuparam durante dezoito anos, sobre a rainha Vitória enquanto jovem.

Escreve com a colaboração de Marguerite Kaye. Como é a relação?
Quando comecei tivemos de acordar os termos - ela é muito escocesa -, mas a colaboração tem sido muito boa. Ela guiou-me sobre como deveria conduzir a história e como a escrever. É uma ótima escritora.

Como é o processo de criação. Tem um plano para o que se vai passar desde o início?
O meu processo não difere do dos outros autores; confronto-me com situações do dia-a-dia, como estar aqui e aparecer alguém por essa porta, e imagino o que poderia acontecer. Começo a escrever sem parar, muitas vezes avanço tanto que sou obrigada a refazer a narrativa porque foge ao que pretendo. Não tenho um plano inicial, prefiro avançar sem barreiras. Às vezes sou obrigada a voltar atrás e alterar a história porque não encaixa no que foi escrito depois. Essa é a pior parte.

Em público, fala muito sobre o seu papel de avó e pouco sobre o de mãe. Porquê?
Não é assim, o meu melhor papel é o de mãe e creio que o fiz muito bem. Primeiro estão sempre as minhas filhas.

Como consegue ter tempo para a escrita e as suas responsabilidades sociais, designadamente agora com a causa da Ucrânia?
Não são só os refugiados ucranianos que me preocupam, eles são milhões e existem no Afeganistão, no Iémen, na Síria, entre outros lugares. Acredito que devemos reunir verbas para construir centros em todos os lugares onde uma criança necessita de educação, de ter livros e instrumentos musicais, e quero que o meu legado tenha essa componente. O que se pode fazer é continuar a ajudar essas pessoas para terem uma razão para viver. Se ajudarmos uma pessoa é importante, se ajudarmos um grupo melhor ainda. Por isso é que escrevo livros para eles também e as receitas das vendas vão para essas causas.

Prefere escrever romances ou livros para crianças?
Ambos, mas principalmente o que me faça estar ocupada.

E esquecer a Família Real?
NÃO!

No início do romance a rainha Victoria está muito presente, o que se mantém com a chefe da Família Real ainda hoje. Foi intencional?
A intenção era recriar o cenário de época, não aludir de forma subliminar à atual rainha. A primeira filha da rainha, Louise, tinha uma relação muito próxima com Lady Margaret na vida real e eu tinha a mesma com Diana. Tentei reproduzir muitos dos sentimentos de amizade entre os dois casos, mas naquela altura a vida das mulheres era muito complicada. O mais importante a retirar destas duas épocas é a necessidade de ter coragem para lutar. Se tivesse de voltar a viver tudo de novo, fá-lo-ia sem dúvida. É só o que posso dizer.

Sofreu muito com a pressão. Será capaz de esquecer esses tempos?
Sim, diria antes, não esqueço esses tempos. Lembro-os e estou muito grata porque foi a preparação para uma nova etapa na vida. Esse tempo foi extraordinário.

É uma das poucas pessoas que viveu esses momentos.
Exatamente, daí ter tido muita sorte.

O que lamenta mais?
Nada, eu nunca lamento certas situações. Arrependo-me se causei sofrimento a alguém, nada mais. Arrependo-me quando penso que poderia ter feito as coisas de uma outra forma e melhor, mas apenas isso. A pergunta é: se não cometermos os erros como é que saberíamos que os eram?

Relata uma vida de sofrimento por parte de Margaret devido aos projetos dos seus pais. Os leitores mais jovens são capazes de perceber o quanto a vida mudou em certas situações, como as das mulheres?
Continua a existir uma situação de escravidão em muitas pessoas, homens e mulheres, e é fundamental que continuemos a lutar contra essa realidade. Tal como se deve lutar contra o bullying, o cyberbullying no Instagram, e noto que ao compararmos a vida em 1865 e agora se observam situações parecidas. Na altura havia a imprensa e agora temos as redes sociais e, mesmo sendo tudo muito diferente, é difícil aliviar a pressão junto dos jovens atuais.

É mais fácil lidar com, por exemplo, a imprensa atual?
...

Não para si?
Acho que nunca é fácil se formos pessoas sensíveis, como eu sou, e vamos perdendo o norte com o que se lê. É um exército que nos combate sempre, mas eu voltaria a fazer tudo de novo. Foi um dia fabuloso o de 23 de julho de 1986 [o dia do casamento com o príncipe André]...

A recente comemoração do Jubileu da Rainha Isabel II confirma que é o único membro da Família Real capaz de ultrapassar tudo?
Creio que é por a Rainha ter passado por muita coisa: a Segunda Guerra Mundial, os ataques aéreos, muitos governantes. E continua sempre a sorrir.

O seu livro situa-se em 1865, quando era muito difícil para uma mulher decidir o seu destino. Foi difícil construir a sua protagonista e reviu-se nela?
Era muito, muito complicado, ter mão no seu destino, mas ela foi capaz. No meu caso, foi mais fácil. Eu adoro a Rainha, adoro tudo aquilo, adoro o André, adoro quem eu sou, de quem descendo e o que faço.

dnot@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt