O impacto da revolução de 25 de Abril em Espanha, que permaneceu em ditadura até depois da morte do caudillo Francisco Franco, ocorrida a 20 de novembro de 1975, não era, para mim, uma evidência até que, ao entrevistar o escritor Antonio Muñoz Molina, este recordou como, em jovem, vinha de carro até Lisboa, com o único objetivo de participar em manifestações. Gozava, assim, pela primeira vez na vida, o júbilo de se expressar livremente, integrado numa multidão. Mesmo que não compreendesse totalmente o significado das palavras de ordem, essa experiência de liberdade já valia a viagem. Essa comunhão de vontades dos dois povos ibéricos em prol da democratização das suas vidas (e não apenas das instituições políticas), há precisamente meio século, é o tema da exposição que inaugura esta terça-feira, no Arquivo Distrital de Faro, Ventos do Povo. De Revoluções e Transições Ibéricas (1974-1977). Iniciativa conjunta do Ministério da Cultura de Espanha e da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), a mostra, com curadoria de Rafael R. Tranche (Espanha) e Carla Baptista (Portugal), reúne 70 imagens que se tornaram ícones de um novo tempo, marcado pela urgência da participação cívica, negada durante décadas pelas ditaduras de Franco e Salazar. Assinam-nas alguns nomes históricos da fotoreportagem de ambos os países como Alexandre Alves Costa, Alécio de Andrade, Guillermo Armengol, Manel Armengol, Pilar Aymerich, Carlos Bosch, Henri Bureau, Augusto Cabrita, Xosé Castro, Gustavo Catalán, Colita, Peter Collis, Nuno Félix da Costa, Demetrio E. Brisset, Paco Elvira, Pepe Encinas, Antonio Gabriel, Eduardo Gageiro, Carlos Gil, César Lucas, Inácio Ludgero, Rui Martins, Pablo L. Monasor, Andrés Palomino, Albano Pereira, José Carlos Pereira, José Carlos Pratas, Guy Le Querrec, Benito Román, Francesc Simó, Ernesto de Sousa, Anna Turbau e Luis Vasconcelos. Todos estão reunidos sob um título - Ventos de Povo/Vientos del Pueblo - que contém, desde logo, duas grandes referências de resistência no mundo hispânico: a canção do mesmo nome do cantautor chileno Victor Jara (autor do hino El Pueblo Unido Jamás será vencido), morto pelos seguidores de Pinochet logo após o golpe de 1973, e o poema do espanhol Miguel Hernandez, combatente pelos republicanos, que morreu numa prisão franquista, aos 31 anos..A exposição, que pode ser vista em Faro até 15 de setembro, está organizada em cinco secções temáticas - “Hoje Começa Tudo”, “O Povo na Rua”, “Do Centro à Periferia”, “Liberdade de Expressão” e “A Revolução dos Corpos”. Através da fotografia como ferramenta estética e política, convida-se o visitante a refletir sobre a História recente a partir das suas formas de representação visual.Em ambos os países, uma geração única de fotógrafos levou as câmaras para a rua, aplicando fórmulas expressivas e linguagens inovadoras. O desaparecimento da censura permitiu novas possibilidades gráficas nos jornais tradicionais, mas também o aparecimento de novas publicações. Aqui foram reproduzidas e amplificadas imagens que se converteram em símbolos de um novo tempo histórico.Depois de Faro, Ventos de Povo viajará para o Arquivo Distrital da Guarda, onde estará patente de 29 de setembro a 30 de outubro. Esta exposição integra o programa cultural conjunto “Portugal - Espanha: 50 anos de cultura e democracia”, iniciado em 2024, e constitído por exposições temporárias, concertos, teatro, ciclos de cinema e palestras literárias inspiradas pelos processos políticos, sociais e culturais que tiveram lugar na Península Ibérica durante a década de 1970 e que conduziram ao termo das ditaduras mais longevas da Europa Ocidental, em processos muito diversos na forma. À revolução militar portuguesa, “opôs” Espanha à figura da transição para a democracia, que decorreu sensivelmente entre o princípio de 1976 e a aprovação, em referendo, da nova Constituição, em dezembro de 1978.Em ambos os casos, o parto da liberdade não se fez sem dor. Embora o termo transição seja mais suave aos ouvidos do que o de revolução (ou de processo revolucionário em curso), entre novembro de 1975 (morte de Franco) e dezembro de 1978 (referendo de aprovação da nova Constituição), 169 pessoas foram mortas em Espanha por motivos políticos. Em 1977, no primeiro 1º de Maio da Transição, a polícia, sob as ordens do Governo de Adolfo Suárez, carregou sobre os manifestantes em várias cidades espanholas, nomeadamente em Madrid, onde se registaram várias dezenas de feridos. A última investida da velha Espanha contra a jovem Democracia ocorreria já a 23 de fevereiro de 1981, com o ataque liderado por Antonio Tejero contra o Congresso dos Deputados. Durou algumas horas, mas já não tinha qualquer hipótese. No ano anterior, um tal de Pedro Almodóvar lançara o seu primeiro grande (e ousado) êxito, Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón. A Espanha moderna e cosmopolita acabara de nascer.