Há filmes cuja herança cultural e simbólica é indissociável das suas qualidades especificamente cinematográficas. O Homem do Braço de Ouro é um desses filmes (disponível na plataforma Filmin). Produzido e realizado por Otto Preminger, tem como base o romance homónimo de Nelson Agren, referência fundamental da literatura norte-americana pós-Segunda Guerra Mundial. O livro foi distinguido com o National Book Award de 1950; o filme chegou às salas dos EUA no dia 15 de dezembro de 1955 — faz hoje 70 anos. O “braço de ouro” pertence a Frankie Machine, uma das composições mais elaboradas da filmografia de Frank Sinatra (ele que dois anos antes ganhara um Óscar, como ator secundário, pela sua interpretação em Até à Eternidade, filme de guerra realizado por Fred Zinnemann). Regressado de uma cura de desintoxicação, dir-se-ia que Frankie ambiciona pôr à prova os seus braços seguindo a vocação musical de baterista; a sua recaída como consumidor de heroína fará com que o dinheiro gasto para se injetar transforme o seu braço esquerdo num trágico objeto de “ouro”. Havia diversos retratos de formas de dependência na história do cinema (americano ou não). Para nos ficarmos por um exemplo invulgar, aliás consagrado com o Óscar de melhor filme de 1945, lembremos The Lost Weekend/Farrapo Humano, de Billy Wilder, sobre um alcoólico interpretado por Ray Milland. Ainda assim, a abordagem explícita de um caso de dependência de heroína (no romance de Agren, Frankie consome morfina) estava longe de ser um tema “normal” na produção da época. .O Homem do Braço de Ouro acabou por estar no centro de um confronto de valores que viria a revelar-se decisivo na transformação dos padrões de produção de Hollywood. Personalidade de espírito independente, com um lugar de destaque nessa produção pelo menos desde Laura (1944), obra-prima do cinema noir, Preminger tinha a noção clara das implicações do seu desafio. De tal modo que não terá ficado surpreendido pelo facto de a Production Code Administration (entidade encarregada de gerir, desde 1930, a boa aplicação dos códigos temáticos definidos pela própria indústria) recusar conferir o seu selo de aprovação a O Homem do Braço de Ouro. A United Artists, estúdio com o qual Preminger mantinha um acordo de produção e difusão, apoiou o filme, retirando-se mesmo da Motion Picture Association of America, organização representativa dos grandes estúdios da Califórnia (à qual regressaria alguns anos mais tarde). Assim, o estúdio pagou a multa de 25 mil dólares pela difusão de um filme sem selo oficial (a produção custara um milhão de dólares, valor mediano para a época), de tal modo que O Homem do Braço de Ouro passou nas salas que arriscaram exibi-lo, incluindo as que pertenciam à Loew’s Incorporated, uma das maiores empresas do circuito comercial. Refletindo as muitas transformações sociais e políticas da época, O Homem do Braço de Ouro acabou por ser reconhecido como um objeto “legítimo” desse circuito, recebendo o seu selo em 1961. Preminger garantira os direitos de distribuição, tendo vendido o filme à ABC para difusão televisiva, com um contrato que, além de garantir a ausência de cortes, lhe permitia escolher os momentos em que viriam a ser inseridos os intervalos para publicidade. Grafismo & jazz O Homem do Braço de Ouro remete-nos, assim, para um período de exuberante e contrastada criatividade no sistema de Hollywood em que a coexistência (artística e financeira) com a televisão começava a ser especialmente importante. Aliás, vale a pena recordar que Marty, a realização de Delbert Mann consagrada com o Óscar de melhor filme do mesmo ano de 1955, é uma crónica social a meio caminho entre o drama clássico e os novos modelos narrativos da televisão. Tudo isto sem esquecer que Preminger era também um homem atento aos talentos das mais diversas áreas criativas. Dois elementos de O Homem do Braço de Ouro são exemplares disso mesmo: primeiro, o trabalho de Saul Bass na animação minimalista do genérico e na concepção do cartaz do filme (com a emblemática mão dilacerada); depois, a música original de Elmer Bernstein, composição jazzística das mais célebres de toda a história do cinema.