A 17 de agosto de 1934, Betty Boop usava o seu charme para incentivar uma missão da máxima importância: matar mosquitos. Quem não? Avisos por todo o lado anunciavam o avanço desses insetos gigantes sobre a cidade, solicitando que os homens se juntassem ao exército de defesa com a maior brevidade possível. Como? Pondo a heroína de olhos redondos e uniforme de saia curta a fazer o recrutamento militar com beijinhos repenicados, enquanto canta, em jeito de marcha, “There's something about a soldier / Something about about a soldier / Something about about a soldier / That is fine, fine, fine!”. E não, isto não é A Guerra dos Mundos transmitida na rádio por Orson Welles, é só uma curta-metragem de animação, com o título do citado tema musical - There’s Something About a Soldier –, que vista hoje tanto faz sorrir pelo retrato burlesco da época do ano em que, de facto, os mosquitos atacam, como deixa uma sensação de desconforto perante a imagem da guerra, tão horrivelmente presente nestes dias. .Insetos que mais parecem aviões, modelos gigantes de raquetes mata-mosquitos, doses industriais de Dum Dum (ou algo do género) e outras divertidas estratégias militares: de tudo isto se faz There’s Something About a Soldier, com a representação da frente de batalha a servir de campo de imaginação para explorar o nosso ódio aos insuportáveis sugadores. .Betty a recrutar..No universo de Betty Boop, os mosquitos não são, porém, o único motivo desse verão de há 90 anos. Numa curta ligeiramente anterior, Betty Boop’s Life Guard, ela vai à praia (Coney Island, perto de onde moravam os produtores irmãos Fleischer) confiando na vigilância musculada do namorado salva-vidas, Fearless Fred – a personagem que já tinha aparecido em There’s Something About a Soldier e, noutras duas curtas desse mesmo ano, She Wronged Him Right e Betty Boop’s Trial. .A veraneante, sem saber nadar, põe então o pezinho no areal com um fato de banho que não dispensa a liga sexy na perna esquerda, e é nestes preparos que se atira à água, em cima de um cavalo insuflável destinado a esvaziar na ondulação... Donzela em apuros, onde está Fearless Fred? Parece que o namorado matulão demora algum tempo a definir a acrobacia certa para entrar no mar, mas quando o faz pode já ser tarde demais: Betty passou à fase em que se imagina sereia, no fundo do oceano, rodeada de criaturas marinhas que desfilam e dançam ao sabor de um belo número musical, nem por isso livre de monstros subaquáticos. .Quanto à célebre liga na perna, por ser demasiado atraente, teria os dias contados. Ou não fosse 1934 o ano em que entrou em vigor o Código Hays (censura moralista aplicada aos filmes americanos), limitando seriamente a pose espontânea de Betty Boop, essa caricatura curvilínea cuja “principal característica talvez seja o mais autoconfiante busto que se possa imaginar”, como chegou a ser descrita num processo judicial na altura. .1934, o ano de (quase) todas as proibições.Criação de Max Fleischer, desenhada por Grim Natwick no início da década de 30, qual arquétipo da era do jazz com o seu inconfundível “boop-oop-a-doop", vale a pena lembrar que Betty evoluiu da aparência de um poodle francês antropomórfico para uma personagem humana e feminina da cabeça aos pés, ganhando popularidade especialmente junto do público adulto, vá-se lá saber porquê... Um desenho animado que, apesar da proposta distinta, punha os Fleischer Studios a rivalizar com a Disney: enquanto esta última preparava o seu reino de fantasia, os Fleischer procuravam navegar o imaginário de um licencioso ambiente urbano no espírito de Nova Iorque. .Os mosquitos gigantes..É desse lugar experimental e sem regras que vem a construção da fama de uma personagem cuja sensualidade se tornou cada vez mais incómoda à polícia dos bons costumes. Assim, a partir de 1 de julho de 1934, Betty Boop foi progressivamente adotando uma postura menos burlesca, ou menos sex symbol, e mais conforme o feminino recatado da dona de casa americana que se pretendia. Enfim, sem exageros. .Senão veja-se, são desse ano curtas como a já referida Betty Boop’s Trial, em que ela mostra a carta de condução ao polícia (Fearless Fred, claro) exibindo a perna com a bendita liga, ou Keep in Style, onde a “Exposição Betty Boop” atrai uma multidão que assiste às suas apresentações de tecnologia moderna, entre automóveis e sofisticado design doméstico, desembocando num novo adereço de moda que consiste em ligas usadas abaixo do joelho, nas duas pernas, e com o acrescento de uma anágua... A melhor forma que os Fleischer arranjaram de comentar diretamente a pressão editorial feita pelo Código Hays. .Fama e clássicos.Foi também em 1934, que se celebrou a própria notoriedade da figurinha: em Betty Boop’s Rise to Fame, um jornalista aparece a entrevistar Max Fleischer (em imagem real), que por sua vez faz saltar Betty do tinteiro e lhe pede para executar alguns números: entre imitações de gente famosa (Fanny Brice e Maurice Chevalier) e uma variedade de cenários, ela dá conta do seu talento performativo, acabando, no final, por salpicar com tinta o pobre jornalista. .O acessório das ligas com anágua, em Keep in Style..Pequenas travessuras de uma personagem que conseguiu manter viva a irritação dos censores, ainda que cedendo ao território dos contos de fadas, que mais tarde seriam o apanágio da Disney. Destaca-se aqui Betty in Blunderland (1934), baseado nas aventuras de Alice, por Lewis Carroll, em que Betty adormece a construir um puzzle que a conduz ao outro lado do espelho, onde encontra as maravilhosas bizarrias desse clássico; e Poor Cinderella (1934), o primeiríssimo filme a cores de Betty Boop – o único da era Fleischer, e também a estreia da Paramount Pictures na animação a cores –, que a retrata como a gata borralheira com duas irmãs feiosas a quem a raiva deixa a cara cinzenta, depois de verem Betty casar com o príncipe (repare-se que o clássico da Disney só foi produzido em 1950). Ninguém diria é que a personagem, durante tanto tempo representada com o cabelo escuro, surgiria aqui ruiva, de olhos claros... Experiências cromáticas. .Poor Cinderella..Nestes reflexos da censura, a mudança mais óbvia foi a remoção do breve apontamento inicial, que vinha a seguir aos créditos, onde Betty Boop abria uma cortina, piscava o olho aos espectadores e movimentava os quadris enquanto fazia o seu característico “boop-oop-a-doop", tido como um gesto altamente “sugestivo de imoralidade”. E sim, esse mimo já não aparece nas curtas com temática de verão Betty Boop’s Life Guard e There’s Something About a Soldier, ambos filmes salvos pelo atrevimento de uma liga na perna esquerda, a sinalizar a resistência marota.