Este livro Canções de Liberdade. A Política Cantada em Portugal e no Mundo (1964-1974) nasceu como? Jorge Mangorrinha (JM): Nasceu na sequência de estudos anteriores e da convicção de que não havia, na bibliografia à escala mundial, um livro que abrangesse géneros musicais e todas as geografias do mundo sob um signo comum, ou seja, canções de liberdade criadas numa década absolutamente vibrante. Isso é novo, em termos editoriais. E também fui movido por esta história maravilhosa, que, aliás, inicia o livro. Pietro Gori, político e compositor italiano que viveu na segunda metade do século XIX e início do século XX, escreveu Addio Lugano Bella, enquanto estava preso na Suíça. Algum tempo depois, quando a polícia helvética o acompanhou até à fronteira para executar a ordem de expulsão, ele foi confrontado com um grupo de trabalhadores que já cantavam aquela canção. Gori conseguira passar o manuscrito da cela para o exterior. A canção espalhou-se e passou a ter uma função político-social. Como funcionou a parceria? JM: O Lado A tem uma presença vasta em números de páginas, mas, ainda assim, considerei importante haver um Lado B, com 50 músicas portuguesas e estrangeiras. Abel Soares da Rosa (ASR): O Jorge convidou-me para complementar o seu texto, gesto que revelou a cortesia e a vontade de enriquecer o debate, um desafio que alimentou o prazer e a paixão de falar, discutir e escrever sobre música, sempre sem preconceitos. O espaço temporal foi definido como? JM: A partir da década de 1960, a música interventiva ganhou popularidade como referência ideológica, a favor da liberdade de expressão, pelo fim das guerras, da discriminação, da opressão e da pobreza, pelo desarmamento nuclear, pela liberdade sexual, pelos direitos das minorias e pela conceção de um mundo de paz e amor. O ano de 1964 é o início formal do período cronológico, porque tem um conjunto significativo de acontecimentos. De tantos, bem expressos no livro, dou apenas estes exemplos. É o ano em que os Beatles saltam de Inglaterra para o êxito americano e no resto do mundo ocidental, superando tudo - “mais populares do que Jesus”, afirmaria John Lennon - e transformando a rebelião num estilo. O belga Jacques Brel grava Amsterdam no Olympia, em Paris, a única gravação que existe desta canção interventiva francófona. No Brasil dá-se o golpe militar, que inicia a ditadura e uma censura implacável que incentiva a luta opositora através das canções. Em Portugal, é gravada a Trova do Vento Que Passa e é escrita a letra de Grândola, Vila Morena. Na América, é gravado o LP clássico do saxofonista e compositor John Coltrane, A Love Supreme, sobre as dores pela luta negra contra a segregação e contra os males do mundo que resumem o estado das coisas à escala planetária. O ano de fecho é marcado pelo 25 de Abril em Portugal, aliás, que também foi o ano de charneira da rubrica que, depois, escrevi para o Diário de Notícias, 50 Canções a Chamar Abril, exclusivamente portuguesas. .Canções de LiberdadeJorge Mangorrinha e Abel Soares da Rosa Editorial Caminho .Chegaram a pensar ir além de 1974? JM: Não como quadro cronológico principal, mas, no final do Lado A, eu escrevi um capítulo final em relação às heranças que essa época nos trouxe aos dias de hoje. Os atuais criadores demonstram o quanto a música ainda é um forte instrumento de manifestação contra o avanço do desenvolvimento desordenado no Planeta e contra o autoritarismo e a intolerância. Ontem, como hoje, no entanto, precisamos de olhar além do inglês e do português para ouvir muitas canções de protesto convencionais. Desde os cantores argelinos aos palestinianos. A canção de protesto pode não trazer mudanças imediatas, mas sempre foi um meio de expressar desafios por parte dos protagonistas que olharam para a frente e reconstruiram a esperança. A política cantada em Portugal tem Zeca Afonso como nome incontornável. Que outros destacaria? JM: O movimento é heterogéneo, e cada qual incutiu nas suas canções o seu cunho pessoal ou mesmo político, da extrema-esquerda à direita radical, de quem se encontrava insatisfeito com a realidade do País e queria dar o seu contributo para a alterar, por dentro no País e por fora no exílio. Apenas como exemplo, Ary dos Santos, Maria Guinot ou Quarteto 1111, no primeiro caso, e Tino Flores, Luís Cília ou José Mário Branco, no segundo. E lá fora? Onde é que a política cantada mostrou influência? JM: Denunciar e procurar um mundo novo foi a essência das canções em todas as partes do mundo, como, inovadoramente, o livro explicita. ASR: Há casos que se destacaram, pela sua relevância. Nos Estados Unidos da América, os cânticos das plantações deram origem ao blues e às canções de trabalho, que expunham o racismo estrutural. Strange Fruit (1939), imortalizada por Billie Holiday, tornou-se um marco contra a violência racial, seguida pela força de Nina Simone em Mississippi Goddam (1964). A tradição folk, com Woody Guthrie - cuja guitarra trazia a inscrição “This machine kills fascists” - e as suas canções de luta, inspirando os movimentos dos operários e trabalhadores, abriu o caminho a Pete Seeger e, mais tarde, a Bob Dylan, continuando as referências ao movimento dos direitos civis e à contestação à guerra do Vietname. A contracultura anglo-saxónica dos anos 60, com artistas pop e rock, continuou esse legado, protestando contra o sistema e a guerra, alertando para as diferenças geracionais. Em França e Bélgica, a herança da Revolução Francesa moldou a chanson engagée, renovada por Georges Brassens, Léo Ferré, Jacques Brel, Yves Montand e Serge Reggiani. As suas letras deram corpo às aspirações de liberdade que explodiram em Maio de 68, quando a música se fundiu com a revolta estudantil e operária, com todas as utopias. As canções de liberdade francesas foram de grande influência para a chamada canção de protesto portuguesa. Na América Latina, a música de protesto transformou-se em símbolo de identidade e resistência. Violeta Parra, no Chile, trouxe a voz do povo com Gracias a la Vida, enquanto Víctor Jara se tornou mártir após o golpe de Pinochet, em 1973. Na Argentina, Mercedes Sosa elevou a Nova Canção a palco internacional e, no Brasil, artistas como Geraldo Vandré, com Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, enfrentaram a censura da ditadura militar. .'Gala Homenaxe' a Zeca uniu Galiza a Portugal