“Por cada Elvis Presley há muitos músicos negros que ficaram no esquecimento e morreram na miséria"
Leonardo Negrão / Global Imagens

 “Por cada Elvis Presley há muitos músicos negros que ficaram no esquecimento e morreram na miséria"

Prétu 1-Xei di Kor é o último trabalho de Xullaji. Um dos maiores nomes do hip hop português destrói fronteiras artísticas, descobrindo novas formas de luta e continentes artísticos muitas vezes inexplorados.  
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De Nuno Santos para Chullage com “c” e “h” e depois para Xullaji com “x” é o quê?
Nuno Santos é o nome que os meus pais me deram. Santos do meu pai e Rocha da minha mãe. É o meu nome de batismo. São nomes de escravos. Os nossos nomes portugueses são sempre uma herança dos senhores coloniais que batizaram o seus escravos, depois os seus negros mulatos e depois os brancos da terra. O que é certo é que esses nomes são uma coisa que se pôs em cima. Agora, o meu nome Chullage é o nome que o meu bairro me deu desde muito cedo. Chullage é o nome que o Zé Inácio e o Kalou me chamaram. Quando me perguntaram qual é o teu nome de rapper, eu disse: “não quero essa merda”. “O meu nome é Chullage, é aquele que me chamam na rua.” É um nome que eu tenho afeto porque é aquele que a minha comunidade, no bairro cabo-verdiano, me deu. A mudança da grafia e não do nome tem a ver com a forma que as pessoas me vão chamando, mudando o nome. No bairro do Asilo 28 de Maio as pessoas chamavam-me Chullage.

E por que razão surgiu essa passagem para Xullaji?
Conforme o bairro e o sítio, o meu nome ia sendo pronunciado de várias formas. Nesse processo de definir a minha cabeça e de perceber, independentemente de onde as pessoas estão a querer fechar-me, onde eu quero estar, resolvi estabelecer a forma de escrever o meu nome. Na grafia cabo-verdiana não existe “ch” e o gê lê-se com “j” e não com “g”. É apenas uma mudança gráfica. Foneticamente escreve-se em crioulo: Xullaji. É só isso. Eu sou o Xullaji, é o nome que me chamavam no meu bairro. 

Mas correspondeu à evolução da tua música? Não cantavas inicialmente mais em crioulo?
Não. Comecei a cantar em crioulo. Quando comecei a cantar foi em sampadjudo que é o crioulo do Barlavento de Cabo Verde, de onde os meus pais são e que era o mais falado no meu bairro. Mas depois comecei a cantar nas duas formas de crioulo. No Prétu tem as duas. Às vezes até se misturam na mesma música. As pessoas perguntam qual é a razão da minha escolha, por que é que eu canto em crioulo? Eu nunca escolho previamente se agora vai ser português ou agora vai ser crioulo. Uma coisa eu sei. Eu morava num bairro que era quase todo cabo-verdiano, onde também havia alguns angolanos e retornados. No Zil a maioria das pessoas falavam em crioulo. Depois quando vou para a escola e viver para Arrentela, ou mesmo antes, no Monte da Caparica, tinha que usar o português para me fazer entender.  Mas não é por causa disso que a minha língua materna deixou de ser o crioulo. Quando eu fiz o álbum Prétu, um trabalho em que eu não estou, sobretudo, a falar para os portugueses, é um álbum pan-africanista e um álbum é maioritariamente cantando em crioulo. Mesmo assim, há um momento, quando eu digo que “A Revolução Não Será um Tweet”, eu estou a falar para as pessoas em geral e falo em português. A língua que eu uso é mesmo isso uma ferramenta de comunicação. Há uma coisa que eu não vou fazer: não vou render-me ao exotismo da moda que está a ser feito sobre a cultura negra atual. Eu sei que há uma luta a fazer com as pessoas africanas que são angolanas, moçambicanas, para quem o crioulo não é a sua língua nativa. Para isso, é preciso usar outras línguas. Outras vezes, posso estar a falar diretamente para uma pessoa cabo-verdiana. Eu não sou defensor de essencialismos, nem por exotismos que são uma cena perigosa. Uso as línguas para comunicar. Este regime vai sempre criar montes de divisões. Há uma série de coisas, o que é certo é que eu cresci na margem sul, onde se fala uma série de línguas, entre as quais o crioulo. Eu com os meus filhos falo crioulo, com a minha família falo crioulo, na minha música eu canto na língua que entender e que o meu coração sentir. Mas obviamente há uma abordagem em Prétu que é mais cabo-verdiana, porque é uma conversa mais interna. 

Uma conversa interna é uma cena mais cultural ou pode ser política e universal?
Há uma letra que eu canto com o LBC, em Cabo Verde, em que se fala de como estamos desiludidos com o neocolonialismo que persiste apesar das independências nos países africanos. Depois veio dar origem ao som da Luta Continua, em que falo sobre “que independência é esta?”. Há uma ideia perigosa que está a crescer mascarada em outra ideia. Que é essa ideia da visibilidade como consequência e armadilha da validação. Pensas que ocupaste um sítio quando te abriram apenas ligeiramente a porta, para não o ocupares de facto. No fundo, acabas a sentar-te nesta mesma mesa que é uma migalha do colonialismo.  
Essa conversa de reivindicar a estrutura capitalista branca, para ficar com ela, não é a minha conversa. Às vezes falo para dentro. Fiz, por exemplo, um tema sobre as pessoas baterem mal ao entrarem no supermercado, gastarem 90 euros e ficarem com o que se comprava com 50 euros há dois meses, e que por sua vez equivale ao que se levava com 30 euros, há seis meses.  Escrevi essa letra numa noite em que eu estava também a bater mal, e é uma letra em português, porque a pensei em português. 

Diversificaste e complexificaste a tua música. Muitas vezes o teu hip hop já parece mais áspero e rock, outras vezes muito diferente.  
Isso é um problema? Complexifiquei ou se calhar sempre foi assim complexo, mesmo desde puto.  Pode ser é que no início não tivesse a coragem ou arte para expressar essa diversidade. Ao contrário do que costuma ser, em que a gente se vai fechando numa cristalização de nós próprios, eu, pelo contrário, não consegui ficar nessa posição e fui-me abrindo. Fazia hip hop, fazia de Chullage, mas adorava andar com a máquina a fotografar. Aprender a ler livros, perceber a cor, experimentar com máquinas digitais e depois analógicas. Houve um tempo em que não tinha guita nenhuma e andava a fotografar para comer. A procura por expressão foi sempre uma coisa que existiu, às vezes mais consciente, outras menos consciente. No que diz respeito à música eu cresci com várias influências: o meu pai, que ouvia toda a música, passava do Quim Barreiros para a Cesária Évora e Bonga na mesma hora. O meu pai era uma pessoa que gostava muito de música. Há um sketch no meu álbum que é ele a falar como gostava de música. Ele veio de Cabo Verde com uma guitarra. Adorava a música, toda a música. Tanto ouvia Dire Straits como música pimba. Depois eu ouvia tudo o que o meu pai ouvia, mais cenas que eu gravava da rádio. Quando o hip hop  veio levei um soco no estômago. Para além de o hip hop meter tudo em termos de musicalidade, havia a palavra, e era sobre nós. Aí foi um abanão. As coisas que andavam a correr como eletrões livres fixaram-se num sítio. Mas antes disto, ouvia muita coisa. Havia um rapaz que morava perto de mim que só ouvia metal  e passava-me discos. Depois havia a influência africana da dance music  que vinha do house e da techno. As pessoas diziam, “mas isso é música de branco”. Não, o house e o techno são de Detroit e Chicago, foram músicas forjadas com as pessoas negras quando a América se desindustrializou. A mesma resposta à música mainstream, tipo disco, por um lado deu hip hop, por outro lado deu techno, por outro lado deu house. Isso tudo existia na margem sul e fundiu-se. E depois tinha o meu irmão, que bazou de casa aos 12 anos. Enquanto eu estava no bairro, ele vinha com discos de Lisboa e de Londres. Agora está em Bali. Ele acompanhava o movimento Drum and Bass.

Hoje fala-se muito de apropriação cultural. Mas toda a arte é uma forma de releitura. Quando é que ela é legítima e quando é que ela é ilegítima? É correto dizer que parte da música negra é uma leitura também da música branca, como parte da música rock dos brancos é também uma releitura da música negra? 
O jazz relê música negra e música europeia, mas relê-a de uma forma negra. Pegas nas escalas e na maneira ocidental, essa é uma forma europeia, e crias swing no tempo e precursão, o que não deixa de ser uma abordagem africana à música ocidental. 

O que é que nessa releitura é legítimo e o que é que pode ser apropriação cultural? 
A ideia de legitimidade é complexa. Everything is a remix. A arte é sempre isso. Eu no Prétu pego nos Tubarões, nas minhas cenas, numa frase e faço um remix. É preciso combater o perigo de fronteirização das coisas, de impedir estas misturas criativas. Mas isso é diferente de quando se cria um sistema de mercado da arte baseado num mecanismo em que - ainda que a arte tenha uma determinada origem - são sempre os mesmos que vão capitalizar tudo. Isso é outra coisa. Imagina os tipos dos blues, que aprenderam a música usando a escala europeia, mas entre duas notas da escala europeia, o tipo do blues tocava muita coisa no meio delas e mete lá a blue note. Já são coisas a fundir. Depois dos blues há o rock, neste processo temos que ver quem é que ficou conhecido e quem é que ficou com o dinheiro. Por cada Elvis Presley há muitos músicos negros que ficaram no esquecimento e morreram na miséria. Isso transforma tudo. Até o freejazz, que é um movimento de resistência negra americana, torna-se um movimento musical de jazz nórdico. Isso é apropriação. Quando as pessoas transformam o funaná e kuduro em música de Lisboa, também acho que é apropriação.

Mas não significa que Lisboa há muito que deixou de ser branca.
Significa isso, porque de outra maneira essas músicas não tinham sido encontradas, mas tem que se ver também quem são os arautos disso? Quem fala? Quem faz? Quem são os donos das editoras? São essas perguntas que temos que fazer. Há uma mercantilização. As pessoas que se tornaram os peritos oficiais dessas músicas não são as pessoas que as forjaram no início. Essas tornam-se invisíveis.   

Nesse projeto não há uma espécie de desvio e descafeinização. A arte nasce com uma raiva e torna-se música para elevador?
Há uma higienização. Vão tirar a letra e ficar só o beat. Há uma passagem do Fanon que conta uma histórias sobre isso. Querem fazer umas mornas como protesto, a polícia vai lá e diz: “vocês podem tocar a guitarra, mas a palavra não que é coisa de preto”. Aquilo que verificamos com outros géneros musicais é um pouco assim: obviamente não se tira a palavra, mas silencia-se, o que é igual. É como essa personagem que diz: “música sem palavra é como violão sem corda.” Nesses momentos essa palavra diminuída é igual ao silêncio ou pior.  Uma vez o José Mário Branco disse-me: “em música não há silêncio, há música que toca para um lado ou toca para um outro.” A música não é neutra. Quanto tu és arauto do regime e só dizes palavras sobre as coisas que tens e como a tua vida é boa, és um arauto do regime capitalista. Não existe uma música neutra. Como dizem no início do filme O Ódio,enquanto um homem se despenha de um arranha-céus e vai dizendo: ‘o problema não é a queda, mas a aterragem, até agora está tudo bem.’”

Há expressões da música hip hop que são uma caricatura da vida dos ricos, entre piscinas , mulheres e grandes carros. De que forma o rap pode ser ao mesmo tempo uma forma de emancipação e uma banda sonora de alienação?
O hip hop sempre teve esta cena de estar prestes a revelar qualquer coisa. Houve pessoas que nunca tiveram nada. É o hip hop  que pode expressar o protesto daqueles que num mundo em que nunca tiveram nada estão contra que lhes mandem dizer que não podem ter alguma coisa. Isso pode ser uma expressão das ruas. Outra coisa é as editoras quando pegam nisso e amplificam isso até se tornar num hino para ter tudo, para consumir tudo. Isso é perigosíssimo. Tenho mesmo uma relação muito difícil com isso. Essa cena do “estou na via e estou na correria” é uma cena neoliberal. Vende que o maior é que consegue tudo e os outros são uns falhados. Os pobres não conseguem porque são preguiçosos. Tu continuas a correr, a correr, pseudo-empreendedor de ti próprio, até que te matas. Já não é o patrão que dá cabo de ti, és tu próprio. És o teu pseudo-patrão. O hip hop tem sido conscientemente, ou inconscientemente, também uma ferramenta para isso. Mas há outros hip hop que não são. Temos que saber distinguir entre aquilo que é amplificado e outras coisas que estão a acontecer. 

Aquilo que o rap vai relatar não é uma glorificação disso, mas depois o que é amplificado pelas editoras é isso. O hip hop fica sempre em tensão, uma parte de glorificação do sistema neoliberal e outra parte que é uma resistência. Existem as duas formas nas ruas e nas rádios.

Este trabalho é o primeiro de uma trilogia? 
Primeiro, Prétu 1 - Xei di Kor, é para constatar que não é por aqui; o segundo, 2 - Lamba Sul, é para dizer por onde pode ser; e o terceiro álbum, 3 - Kanhon di Boka, é uma espécie de recolha de spoken words.  Provavelmente não vai ter a musicalidade do Prétu. Será só palavras. Muitas delas pensei-as entre Cabo Verde e Portugal quando estava chateado com a invasão neoliberal que via.   

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