Paulo Alexandre: Portugal no coração
Estranha prova de vida, esta: há um par de semanas, num alfarrabista de Lisboa, perdido num monte de livros, dei com a sua autobiografia política, intitulada Duas Vidas Numa Só - Entre Cifrões e Canções. Querendo fazer o retrato do autor, perguntei ao telemóvel onde parava esta lenda, tendo recebido de pronto a resposta de que ela continuava viva e bem viva, com 93 anos belíssimos, razão mais do que suficiente para me convencer a comprar o livro das suas memórias, um espesso volume de 250 páginas, com muitas fotografias.
Aí se explica, desde logo, o motivo pelo qual nos temos esquecido dele, em horripilante injustiça: é que Paulo Alexandre é nome artístico, o verdadeiro é Modesto - rectius, Modesto Pereira da Silva Santos -, sendo a modéstia uma das muitas qualidades deste cantor imortalizado por uma música, Verde Vinho, mas que não foi, de modo algum, homem de uma nota só, porquanto à carreira artística, prenhe de sucessos em Portugal e na estranja, mormente na migratória, associou uma outra, e não menos exitosa, a de bancário e gestor com elevadas responsabilidades. Cruzaram-se ambas as duas - daí o subtítulo da autobiografia, Entre Cifrões e Canções -, naquilo a que hoje se chamaria uma “sinergia”, mas que foi em verdade e tão-só uma vida, que já vai longa e, cremos, merecidamente feliz.
Para se ter uma noção do que se fala quando se fala de Paulo “Modesto” Alexandre, dir-se-á tão-somente que, no preciso ano em que terminou a Segunda Grande Guerra - 1945, portanto -, o futuro astro de Verde Vinho passou uma noite inteira num calabouço, e pelo singelo e venial motivo de andar à pendura num eléctrico, fazendo o percurso entre o trabalho no banco e a Escola Veiga Beirão, onde frequentava o ensino nocturno. Foi detido por um polícia, que não se comoveu ante seu pranto, e dali levado à esquadra, de onde foi lestamente despachado pelo agente Simões para a Tutoria de Menores, Escadinhas de São Crispim.
Na esquadra, ainda conseguiu falar para casa ou, melhor dizendo, para a mercearia do Sr. Celestino, que avisou os pais do sucedido ao filhinho, mas nem isso o poupou de ter o cabelo aparado à escovinha pelo vingativo polícia Ramalho, o qual, assim como assim, cuidou que não metessem o miúdo numa cela “com um gabiru qualquer.” Partilhou-a com outro rapaz, mais velho do que ele, e que passou a noite a chorar convulsivamente, vá-se lá saber porquê, a prova provada de que, por muita nostalgia que alguns tenham “do antigamente”, foram tempos tramados para vária gente, pobres de Cristo.
Na manhã seguinte, Modesto foi presente ao juiz, pelos vistos piedoso, que não só libertou o rapaz sem mais delongas (“Vá lá a gente ser prior de uma freguesia destas! Sim, vá lá a gente ser prior de uma freguesia destas! Estejam descansados, não há processo nenhum, não ficará qualquer registo que lhe manche o nome”) como deu uma áspera desanda no polícia Ramalho, à conta da carecada infligida ao infante.
O pior foi no banco, o gozo dos colegas. Todos quiseram passar-lhe a mão pelo “melão”, mas o António, então, um groom mais velho do que ele, não perdeu nas semanas vindouras uma oportunidade para lhe dar “um pilão” na careca, de punho fechado e dedo médio saliente, dobrado pelas falanges. Talvez tenha sido o trauma causado por este bullying bancário que levou Paulo Alexandre, já um cantor de estalo e renome, e no pós-revolução, a adoptar e usar uma trunfa frondosa, cheia de caracolitos, muito Anos 70, a qual, aliada a uns óculos escuros fumados, o converteram claramente no Neil Diamond português, em versão diáspora.
Chegada esta altura da prosa, perguntais, e bem, como é que um miúdo de 13, 14 anos, já estava empregado num banco, e tudo à luz do dia, na máxima das legalidades. É um facto: Modesto, nome dado pelo seu padrinho de baptismo, nascera eram 9.00 da manhã do dia 16 de Fevereiro de 1931, em Vouzela, mas, poucos dias volvidos, já viajava ao colo da mãe, de comboio, rumo a Lisboa, onde, até aos 3 anitos, viveu com um casal a quem tratava por “padrinhos.” Com 3 primaveras apenas, foram dar com ele em cima do balcão de uma padaria próxima, onde ia aviar-se, com o saco a tiracolo e a cantar um fado de Hermínia Silva, com o “Sr. José Padeiro” a acompanhar à guitarra. Talento precoce, como se vê.
Por volta de 1936, o ano da Guerra Civil de Espanha, os “padrinhos” passaram a ter telefonia em casa e Modesto, um miúdo alegre e irrequieto, não largava o aparelho, sempre sintonizado no éter, na companhia da recém-inaugurada Emissora Nacional. Nessa época, a mãe relacionava-se, sem grande intimidade, com uma rica família indiana de Goa, cujos membros dominavam o alemão e se expressavam por norma em língua germânica (um deles, inclusive, estudava então em Berlim, vendo o despontar do nazismo).
Um dia, o casal goês perguntou à mãe de Modesto se os autorizava a levarem o menino a visitar a Emissora, no n.º 2 da Rua do Quelhas. Ao fim de décadas, quase 100 anos, Paulo Alexandre ainda se lembra do fascínio que então sentiu - e o facto de lhe terem pedido para cantar uma das muitas modinhas brasileiras que trinava em casa. Perguntado se no futuro quereria ser cantor, disse que sim, como… a Carmen Miranda.
Entrou para a 1.ª classe em 1938, na Escola Primária n.º 84. Mas depois veio a guerra e, com ela, o racionamento. Paulo Alexandre lembra-se de passar muitas madrugadas a dormir à porta dos estabelecimentos de víveres, ocupando um lugar que a mãe viria preencher perto das 9.00 da manhã, depois de preparar o pequeno-almoço e arrumar a casa. Agruras, muitas: “Recordo-me do desespero de meu pai face à precariedade dos vários empregos e do esforço e da genialidade de minha mãe para que não nos faltasse o essencial, sempre num minucioso rateio dos nossos parcos recursos.”
Quando as coisas melhoraram, isto em 1949, o pai comprou-lhe um banjo. Em segunda mão, mas quase novo. E, mais ainda, um vizinho amigo, reformado de uma orquestra sinfónica, ofereceu-lhe um violino e prontificou-se a dar-lhe aulas do dito, sem cobrar nada. Modesto, porém, deu-se mal com o solfejo, chato como a potassa, e trocou o violino pelo banjo, mais amigável.
Antes disso - e estamos nos princípios de Junho de 1944 -, houve um instante decisivo, desses que mudam vidas. Na altura, os pais de Modesto moravam num rés-do-chão da Rua Dom Luís de Noronha, quase à esquina com a Avenida de Berna, defronte do Parque de Santa Gertrudes, a.k.a. Mata de Palhavã, onde em tempos existiu a Feira Popular de Lisboa e hoje está instalada a Gulbenkian generosa.
Uma tarde, chegado Modesto a casa, vindo das aulas (frequentava então o 3.º ano da Escola Comercial Veiga Beirão), a mãe disse-lhe, intrigada, que uma criada fardada, da moradia da rua, viera perguntar por ele, pois a dona do palacete, quando passava a pé defronte da casa dos pais de Modesto, ouvia o garoto a tanger o banjo, ou a assassinar o violino, e queria convidá-lo a tocar numa festa na noite de São João.
“Nunca vira uma casa tão grande e tão bonita, nem senhora tão gentil”, assim recordou Modesto a sua entrevista de emprego. Disse-lhe a dama, logo a abrir, “Olha que tu não vais ser um músico contratado… Tu és um convidado, um vizinho nosso amigo de quem todos vão gostar muito. Está bem?”
No dia aprazado, Modesto lá esteve, tocou uma coisas, não muitas, e, como era miúdo, acabou por deixar-se adormecer num dos sofás da mansão. Dias passados, de novo a criada, chamando-o ao palácio. Aí, a senhora quis entregar-lhe um envelope (“Isto não é para te pagar. É apenas para comprares uma prendinha para recordação da nossa festa, que tanto alegraste com a nossa música”), mas Modesto, que era modesto, mas não era parvo, contrapropôs com um emprego num banco: “Eu peço muita desculpa, mas dinheiro não posso aceitar, mas ouvi dizer que o marido da senhora é director de um banco. Se a senhora lhe pedisse que me arranjasse lá um emprego, seria o melhor prémio que alguém me poderia dar.”
Meu dito, meu feito. Pouco depois, a criada de crista, qual fada madrinha, surgiu novamente em cena, dizendo-lhe que o senhor Mello e Sousa queria falar com ele. Lá foi. Na biblioteca da casa, refastelado num sofá de couro, o senhor Mello e Sousa fumava um charuto, coisa que fez o pequeno Modesto achá-lo parecido com Winston Churchill, então um influencer muito em voga nos jornais e revistas de actualidades. No decurso da conversa, e sabendo que o miúdo tinha apenas 13 anos, Mello e Sousa disse-lhe para continuar a estudar e que voltasse dali a cinco anos, uma eternidade. A esposa, salvífica, alvitrou ao marido que o miúdo entrasse como groom para o banco, passando a estudar à noite, e assim ficou acordado. À saída, no jardim, Modesto chorou de alegria.
E assim, a 1 de Agosto de 1944, no preciso dia em que começou a revolta do gueto de Varsóvia, o jovem Modesto Pereira da Silva Santos dava entrada no n.º 2 da Rua dos Fanqueiros, à Baixa, para ser admitido no quadro de “pessoal menor” do Banco Burnay. Salário de 150 escudos mensais, com direito a almoço na cantina do banco, sita no 4.º andar do mesmo edifício. Apresentou-se ao Sr. Garcia, dizendo ser, e cita-se “o recomendado do Sr. Mello e Sousa”, mas, pese tal empenho, o Sr. Garcia mandou-o para casa, pois vinha trajado à menino. “Julgas que isto aqui é uma creche? Arranja umas calças à homem e quando as tiveres vens trabalhar, entendido?” A mãe temeu o pior, ao vê-lo chegar tão cedo de regresso a casa, mas em três tempos transformou umas calças à golf, feitas por medida, numas calças de homenzinho, aptas ao labor bancário.
Ultrapassado o percalço, Modesto regressou no dia seguinte à Baixa, onde o Sr. Garcia, já mais convencido, o mandou ir à casa Rodrigues & Rodrigues, a São Paulo, para tirar medidas e fazer duas fardas. Com 13 anos de vida, por certo não imaginava aquele miúdo que um dia teria de usar outros trajes, esses árabes e de imaculado branco, quando fez um périplo de negócios pelos países do Golfo Pérsico. Como jamais lhe passou pela cabeça, crê-se, que, em 1965, chegaria a subdirector do Departamento de Operações com o Estrangeiro, e que, em cinco anos, seria promovido à chefia da Direcção de Crédito num banco então já chamado Fonsecas & Burnay. Ou que, em 1972, ascenderia a director-coordenador das direcções Internacional, Operações Gerais e Operações com os Territórios Ultramarinos e que, nesse mesmo ano, transitaria para o Crédito Predial Português.
Em 1974, no ano da Revolução, assumiu a direcção do Departamento de Relações Internacionais do recém-fundado Banco Intercontinental Português (BIP) e, em 1975, o do quente PREC, foi nomeado representante do Ministério das Finanças na administração do IAPMEI - Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas Industriais, cargo que abandonou, a seu pedido, logo no ano seguinte. Em 1977, com a extinção do BIP, assumiu o lugar de director das Relações Internacionais do Banco Pinto & Sotto Mayor, aposentando-se em 1981, ao fim de 37 anos ao serviço da banca portuguesa, da qual hoje pouco resta. Ao longo dessas quase quatro décadas, percorreu o mundo inteiro, Europa, América do Norte e Latina, África, o Médio e o Extremo Oriente, e fundou o Forex Português, filiado na Association Cambiste Internationale, cabendo dizer-se que o Forex é o maior mercado do mundo, deixando as bolsas a léguas de distância, com um movimento equivalente a cinco triliões de dólares por dia.
Mesmo com o auxílio das suas memórias, é impossível saber se algum dia Modesto terá pensado chegar onde chegou. A sua trajectória de vida, na verdade, é um case study sobre como funcionava o “elevador social” num país desigual e injusto, movido por cunhas e por empenhos, divagação que nos conduz a uma outra, que é a de saber se no Portugal que hoje temos, decerto menos desigual e injusto, que mecanismos existem para a promoção de miúdos como o Modesto do banjo, sobretudo se pertencerem a etnias ou minorias historicamente desfavorecidas, para dizer o mínimo.
Adiante. Feito adulto aos 12, 13 anos, ou mesmo antes, Modesto não perdeu logo, como é óbvio, os traços de criança, que o levaram a envolver-se em mil brincadeiras com os seus colegas de ofício, da mesma idade do que ele, como o José Luís e o Fernando Barroso, com quem jogava à bola em pleno Terreiro do Paço (!) ou com quem ia, depois de almoço, dormir a sesta para os sofás de cabedal do gabinete do gerente, o Sr. Paiva de Andrade. Um dia, por iniciativa do Américo, cognominado Pau-Preto, puseram-se todos aos pulos num dos sofás, usando-o como cama elástica, com resultados fatídicos para a integridade do mobiliário. Claro está, foram chamados ao gabinete do administrador com o pelouro do Pessoal, o Sr. Visconde do Marco, que lhes deu um valente raspanete, mas não concretizou a tenebrosa ameaça de os pôr na rua - e no desemprego.
A este propósito, diz Modesto/Paulo Alexandre que a administração do Burnay até incentivava os grooms a estudarem e a divertirem-se e que, uma vez despachado o serviço do dia, ele e os colegas matavam o tempo declamando versos, fazendo partidas, lendo o que havia. Modesto chegava a levar o banjo para o banco, e a fazer sessões de variedades à hora do almoço. “E o que hoje muito nos pode espantar”, diz, “é que, tendo de tudo isto conhecimento, nunca a direcção ou a administração se mostrou desagradada…”
Uma festa diária, portanto, que tinha o seu momento alto por alturas das celebrações do Natal, animadas por Modesto e pelos seus companheiros: parelhas de palhaços rico e pobre, números de ilusionismo, canções tocadas no banjo, imitações das Lições do Tonecas, popularíssimas, a fama dos rapazes do Burnay chegava longe e levou-os a serem convidados para actuar - gratuitamente, é claro - em colectividades, sociedades de recreio, casas regionais, como a Casa Regional de Ferreira do Zêzere ou a Associação Académica da Amadora, a extensa rede de agremiações que compunham a “sociedade civil” de então, hoje arrasada pelos smartphones e pelas redes ditas “sociais.”
Além das paródias, o grupo desportivo, onde os paquetes do banco praticavam diversas modalidades, com destaque para o atletismo e, claro, o futebol. O Barroso, o melhor sprinter do grupo, chegou a ser, nos 60 metros, Campeão de Lisboa, pelos juniores do Benfica, e os rapazes do Burnay venceram, por diversas vezes, uma coisa deliciosamente chamada Campeonato Bancário, a nível nacional. Na época de 1948-1949, quando jogava a avançado, num recontro com a equipa do Banco Espírito Santo, disputada num pelado pertencente ao Sporting, Modesto lesionou-se com gravidade, com fractura exposta da tíbia e do perónio da perna direita e uma longa hospitalização, e três intervenções cirúrgicas.
No hospital, foi visitado por vários membros da equipa adversária, entre os quais um rapaz chamado Jorge, que trabalhava na Secção de Títulos do Banco Espírito Santo. Reencontram-se passadas décadas, nos Anos 70, lembravam-se ambos do incidente: o Jorge era Jorge de Brito, agora aos comandos do BIP, que acabara de inaugurar as suas instalações num edifício então célebre em Lisboa, na Fontes Pereira de Melo, de vidros grená, que em 1977 seria alvo de um violento atentado à bomba (sobre a saga do BIP, cf. Cristina Ferreira, “Um BIP à margem da tradição”, Público, de 29/3/1999). Brito convidou-o para dirigir as Relações Internacionais do banco e foi em resultado disso que Modesto acabou enviado para o Médio Oriente, onde, para se adaptar ao calor e aos costumes locais, trocou o abafado fato de três peças por uma confortável jelaba.
Caminhos desbravados com trabalho e custo, é certo, a que não faltou como sempre o acaso e uma pontinha de sorte, a fortuna que, entre o mais, colocou no seu caminho um benfeitor intelectual, o Sr. Junot, procurador do banco, o qual, vendo-o a ler o Ivanhoe nos intervalos do serviço, o orientou nas leituras e lhe instilou esse hábito, emprestando-lhe livros atrás de livros, que Modesto devorava: “Foi meu mentor literário dos 13 até aos meus 20 e poucos anos, altura em que atingiu o limite de idade. Reformado, faleceu pouco depois. Creio que não estarei muito longe da verdade se afirmar que nos dez anos daquela contínua e valiosa relação li, uns atrás dos outros, quase tantos livros como os que daí em diante me passaram pelas mãos, isto apesar de continuar a ser um dos meus maiores prazeres, a par da música…”
Atingidos os 18 anos em Fevereiro de 1949, Modesto passou automaticamente para os quadros do “pessoal maior”, onde brilhou como dactilógrafo, carreira que jamais abandonou, pese começar na altura, inícios dos Anos 50, a aventurar-se na música, primeiro como produtor e locutor de um programa semanal, o Placard Musical, gravado na Rádio Ribatejo, em Santarém, a par de actuações amadoras pelas colectividades de Lisboa, com realce para Os Económicos, no Bairro do Rego, perto de onde morava. Em Janeiro de 1954, um amigo encontrado na rua diz-lhe que tinha acabado de prestar provas na Emissora, para cantar nos Serões para Trabalhadores, desafiando-o a ir também. Modesto aceitou o repto, foi comprar duas pautas à Sassetti, na Rua do Carmo, uma de Yves Montand, outra de Rui de Mascarenhas, e pediu ajuda nos ensaios a uma pianista sua vizinha. Em Fevereiro, ficou aprovado nas provas, perguntaram-lhe se tinha um nome artístico. Lembrou-se de Paulo Alexandre por um motivo singelo: tinha-se casado em 1953, e a mulher estava grávida, pensando o casal em Maria Leonor, se fosse menina, ou em Paulo Alexandre, caso rapaz. Assim nascia uma estrela.
Pouco depois, em Março, foi convocado para o ensaio e gravação do programa Ouvindo as Estrelas, onde conheceu Luís Piçarra, que logo lhe ofereceu mais trabalhos, e o inolvidável Tavares Belo, um dos muitos maestros com quem teve a ventura de actuar, como Humberto Batalha, Wolmar Silva, Belo Marques, Alves Coelho, Joaquim Luiz Gomes ou Nóbrega e Sousa (este, futuro autor de Sobe, Sobe, Balão Sobe, cantado por Manuela Bravo). De referir, pois merece ser referido, que um dos trabalhos oferecidos por Piçarra diz tudo sobre uma época: actuar num espectáculo organizado pelos finalistas da Faculdade de Ciências, no Cinema Império, precedendo a exibição do filme O Fio da Navalha. Além de Paulo Alexandre e de Luís Piçarra, actuaram Maria de Lurdes Resende e Rui de Mascarenhas.
Não muito depois, em Abril de 1954, Alexandre foi uma das vozes estreantes do efémero Sexteto Sol Maior, surgido da junção do já existente trio feminino As Três Marias (Maria Madalena e Maria Margarida, do Porto, e Maria Fernanda Wolmar, de Lisboa) com o tenor Américo Lima e Rui de Mascarenhas.
Em 1957, o maestro Belo Marques ofereceu-lhe o seu primeiro original, a canção Campanários de Lisboa, e, nesse mesmo ano, Paulo Alexandre gravou pela DECCA o seu primeiro disco, todo dedicado à capital, como se vê: Campanários de Lisboa, Lisboa Nova, Miradouros de Lisboa e O Gaiato de Lisboa.
Com Américo Lima, Nuno d’Almeida e Fernando La Rua formou o conjunto vocal 4 Espadas, que viu a luz em 4 de Fevereiro de 1958 e, de imediato, se converteu num dos mais populares grupos do seu tempo, com actuações no Casino Estoril, no Teatro Stephens, da Marinha Grande, na RTP, no Cinema Império, no Concurso Miss Portugal (no Pavilhão dos Desportos), etc., etc.
Alexandre manteve em paralelo uma carreira a solo, sendo contratado para actuar no Casino do Estoril e no Terraço das Estrelas do Hotel Embaixador, e participando na primeira comédia musical levada à cena no Teatro Monumental, por iniciativa de Vasco Morgado: Margarida da Rua, versão portuguesa, da autoria de Armando Cortez, do grande sucesso do teatro musicado francês Irma, La Douce, original de Alexandre Breffort com música de Marguerite Monnot, mais tarde adaptado ao cinema por Billy Wilder, com Jack Lemon e Shirley MacLaine nos principais papéis. A versão lusitana contava com Laura Alves, João Villaret (substituído, por doença, nas vésperas da estreia), Paulo Renato, Rui de Carvalho e os estreantes Morais e Castro e Rui Mendes.
Seguiram-se outras peças (por ex., Boa Noite, Bettina, de 1961), uma actuação do 4 de Espadas ao lado de Louis Armstrong (Cinema Monumental, Março de 1961), a participação na opereta Romance na Serra (de 1962, onde fez o par romântico com Alice Amaro), a conquista do Óscar da Imprensa, em 1963, e o music-hall Ouvindo as Estrelas, que assinalou, para Paulo Alexandre, uma interrupção da sua carreira musical durante 12 anos, por incompatibilidade com as responsabilidades crescentes que ia acumulando na sua vida-outra, a de bancário.
Ainda assim, vemo-lo ligado ao lançamento, em 1965, da histórica boate O Calhambeque, que a par de uma aprazível pista de dança tinha também, imagine-se, uma fantástica “pista minicar” que mimetizava o Circuito de Le Mans. Em 1969, o estabelecimento seria rebaptizado O Calhambeque/Beat Club e, caso não saibam, ficava na Conde Sabugosa, n.º 11, especializando-se em “êxitos anglo-saxónicos.” Dali foram transmitidos, pela RTP, muitos programas musicais, um dos quais com a participação de um conjunto de fama internacional, The Foundations. A par de A Lareira, na Praça das Águas Livres, da Ronda, do Palm Beach e do Van Gogo, na Linha, do Caruncho, ao Lumiar, do Porão da Nau, ao Saldanha, do Caixote, do Pop Clube (mais tarde, Primorosa de Alvalade), do Relógio (mais tarde, Stones) e do Ad-Lib, o Calhambeque foi uma das primeiras e mais míticas boates da noite lisboeta. Ao vermos fotografias do seu interior, interrogamo-nos como foi possível destruir um património sentimental daqueles, que hoje faria as delícias de saudosistas, turistas e cidadãos em geral. Que barbaridade.
À semelhança da boate que fundou, Paulo Alexandre integra o património sentimental nacional, sobretudo quando, já no pós-Revolução, retomou a sua carreira artística e musical. Não sabemos responder à pergunta célebre sobre onde estava no 25 de Abril, mas sabemos, porque ele o conta, que sofreu um pedaço com a nacionalização da banca e com o que eufemisticamente chama “os atropelos inerentes.” Os directores, como ele, eram considerados “lacaios do capital” e, em conformidade, tiveram os vencimentos reduzidos ao ordenado-base da tabela salarial, ao qual era aplicado um “moralizador” suplementar, o que implicava uma redução de mais de 50% do salário. Talvez por isso, Alexandre - ou melhor dito, Modesto - aceitou o convite para integrar a administração do IAPMEI, em representação do Ministério das Finanças. Não aqueceu o lugar e, em Janeiro de 1976, apresentou demissão.
Agora, uma história linda, desconcertante, comprovativa de que a vida dá muita volta e que, apesar de ser uma palavra difícil de pronunciar, a serendipidade existe e acontece: em Outubro de 1976, andava Modesto pela Alemanha, mais propriamente Estugarda, em andanças da sua profissão de bancário, quando, terminado o dia de trabalho, decidiu ir a uma cervejaria local, na companhia de Manuel Mexia e Carlos Suarez, do Forex espanhol. Die Gartenlaube era uma cervejaria-jardim, com um ambiente e uma decoração aprazíveis e uma juke-box à entrada. Minutos depois, alguém pôs a tocar uma música de cariz grego, cantada em alemão, que deixou Modesto - ou melhor dito, Paulo Alexandre - verdadeiramente abismado. Tratava-se de Griechischer Wein, de 1974, interpretada pelo cantor austríaco Udo Jürgens, que a escreveu em 1972, depois de passar umas merecidas férias na Ilha de Rodes, e cujas primeiras estrofes, como todos sabem, garantem que:
Es war schon dunkel
Als ich durch Vorstadtstraßen
heimwärts ging
Da war ein Wirtshaus
Aus dem das Licht noch
auf den Gehsteig schien
Ich hatte Zeit und mir war
kalt, drum trat ich ein
Da saßen Männer mit braunen
Augen und mit schwarzem Haar
Und aus der Jukebox
erklang Musik
Die fremd und südlich war
Als man mich sah
Stand einer auf und lud mich ein
E o refrão, inesquecível:
Griechischer Wein ist
So wie das Blut der Erde
Komm’, schenk dir ein
Und wenn ich
dann traurig werde
Liegt es daran
Dass ich immer träume von
daheim
Du musst verzeihen.
A música ou, melhor, a letra, versa o tema de imigrantes gregos na rRegião do Ruhr e mete um narrador que entra numa taberna numa noite escura e fria e encontra um grupo de homens morenos de olhos negros cheiinhos de saudades de casa. Fala-se numa juke-box, tal qual na história real de Paulo Alexandre, das mulheres e dos filhos dos migrantes gregos, de montes verdes e de mar e vento. Lançada em 1974, a canção atingiu os tops da Alemanha e da Suíça, em 1975, foi n.º 3 na Áustria, valeu um Disco de Ouro a Udo Jürgens, que nesse mesmo ano gravou uma versão francesa (A mes amours), grega (Phile kerna krassi) e, em 1980, inglesa (Come share the wine).x
A popularidade foi tal que os autores da música e da letra foram recebidos pelo PM grego, Konstantinos Karamanlis, que lhes agradeceu a homenagem aos trabalhadores do seu país e, em 2020, Griechischer Wein foi classificada em 6.º lugar na lista das 100 Canções Pop Austríacas mais importantes de todos os tempos. É nestas coisas que a Wikipédia ajuda muito: foram feitas versões inglesas, holandesas (esta, falando do Schrobbelèr, um licor de ervas muito popular na cidade de Tilburg), espanholas (por José Vélez) e portuguesa (de Paulo Alexandre, com o selo Rossil, empresa por si fundada com António Sala e outros). Até Bing Crosby a trinou, o mesmo sucedendo com Al Martino (que, caso não saibam, aparece como crooner no Padrinho de Coppola). E a música, com letra em francês e basco, é o hino oficial do Bayonne Rugby Club.
Foi ela que relançou a carreira de Paulo Alexandre, projectando-a para píncaros nunca vistos, o primeiro lugar dos tops nacionais, menção na revista Billboard, um estrondo aquém e além-Atlântico, em especial no Brasil. No decurso de uma tournée por este país, Marcello Caetano convidou-o para sua casa, onde ouviram ambos Verde Vinho em silêncio e, no final, o ex-governante pediu-lhe que assinasse o disco (mais tarde, a Maria Helena Prieto, Marcello dirá que a música lhe “chocalhou a alma”, “apesar de a música ser alemã ou talvez por isso, por ser um canto báquico sem os langores do fado, e que se ajusta ao borbulhar capitoso dos vinhos minhotos.”).
No país-irmão seria feito um filme, inclusive, tendo no papel principal o actor Dionísio Azevedo, vedeta de muitas novelas, como Dona Xepa ou O Astro. Um sucesso que, obviamente, muito deve à diáspora portuguesa e sobretudo ao facto de esta ainda ser de “primeira geração” ou quase, portanto com ligações afectivas e raízes no torrão natal, coisa hoje cada vez mais remota, quando não inexistente.
A música levaria Alexandre aos quatro cantos do mundo, EUA, França, Argentina, a shows no Copacabana Palace, a muitas e muitas coisas. O cantor ainda gravou outros êxitos, mas depois fixou-se na TV, na produção de séries documentais, como uma, Portugal e o Mar, da autoria do almirante Vítor Crespo, ou O Que é Feito de Si, com 120 episódios, versão avant la lettre destas Provas de Vida.
Hoje afastado dos palcos (depois de ter dado vozes às versões portugueses de A Pequena Sereia I e II e Mulan I e II, da Disney), fustigou nas suas memórias os críticos do “nacional-cançonetismo”, estilo de que ele, goste-se ou não, foi um dos principais expoentes. Em 2009, a Sociedade Portuguesa de Autores conferiu-lhe a sua Medalha de Honra. Destino improvável para um rapaz nado Modesto, que aos 13 anos já trabalhava na Baixa e que aos 93 permanece, ao que parece, aquilo que sempre foi, um país no coração.
Para o meu tio Manecas,
que conheceu Paulo Alexandre
Escreve de acordo com a antiga ortografia.