“Há duas coisas que não queria ter gravadas na minha sepultura: ‘Aqui jaz Paul Newman, que morreu fracassado porque os seus olhos ficaram castanhos’ [risos] e ‘Aqui jaz o pai que nunca esteve presente para os filhos’”. Entre a piada dirigida a uma audiência devota da cor da sua íris e a ponta do iceberg de um sentimento de culpa doméstica, as palavras de Paul Newman, numa das dezenas de entrevistas que deu para a televisão ao longo da vida, separam claramente o homem da estrela de Hollywood que sempre carregou o fardo (e insegurança) da própria beleza física. Quando fez esta declaração semidivertida, estava longe da provecta idade para morrer, e os olhos, esses – como a câmara no estúdio se aproxima para certificar –, ainda exibiam a sua gloriosa qualidade cromática. Mas o que aconteceria se fosse apenas um atributo fisionómico a ditar a eternidade de Paul Leonard Newman? Bem, a eternidade seria coisa supérflua. Nascido a 26 de janeiro de 1925, em Cleveland, Ohio, este ator contemporâneo de Marlon Brando e James Dean, lendas com quem partilhou as bases do Actors Studio, sofreu desde cedo o estigma da “beleza acima do talento”: dizia-se das suas feições que teriam sido esculpidas por Miguel Ângelo e não se sabia muito bem o que fazer diante do efeito nu da sua mirada; um simples baixar de óculos escuros ou aquele sexy “Lock the door” (“Tranca a porta”) que se ouve na adaptação da peça de Tennessee Williams por Richard Brooks, Gata em Telhado de Zinco Quente (1958), são suficientes para provocar trepidação no sistema nervoso... Comprovou-o Elizabeth Taylor, que nesse filme treme sob influência do contacto olhos nos olhos com a dita escultura humana. Estes eram os tempos em que o estatuto de movie star trazia como condição mediática o brilho dos escândalos, a vida amorosa movimentada e os vícios que acrescentavam camadas ao que se via no grande ecrã. Tempos que Newman conseguiu atravessar relativamente incólume, gerindo em segredo um desregrado consumo de álcool, que apesar de tudo nunca o afetou a nível profissional – sobreviveu à dita voracidade do star system e ficou na mitologia de Hollywood como protagonista de um dos casamentos mais longevos, senão o mais longevo, da história da indústria, com a atriz Joanne Woodward (já lá vamos). Os primórdios do seu percurso serão indissociáveis do teatro e da televisão, mas foi o cinema que lhe trouxe a fama e sucessivas nomeações para Óscar, das quais só se concretizou uma vitória em 1987, pelo filme A Cor do Dinheiro, de Martin Scorsese, ironicamente, na mesma altura em que Newman via a sua carreira ser homenageada com a estatueta honorária da própria Academia. E foi pela imagem da força que tudo começou: Marcado pelo Ódio (1956), um biopic da autoria de Robert Wise sobre um pugilista chamado Rocky Graziano, pô-lo no mapa das estrelas, com o sabor amargo de se tratar de um papel originalmente destinado a James Dean, que morrera pouco tempo antes num trágico acidente de carro. .Nessa década de 50, afirmou-se numa postura ousada, entre o malandro, o corpo instável e o fora-da-lei, que teve as suas expressões mais vívidas já nos anos 60, em obras como A Vida é um Jogo (1961), de Robert Rossen, onde interpreta um jogador de snooker – papel retomado 25 anos mais tarde no filme que lhe valeu então o Óscar de Melhor Ator, A Cor do Dinheiro –; Corações na Penumbra (1962), de novo dirigido por Brooks; Hud: O Mais Selvagem Entre Mil (1963), de Martin Ritt; O Presidiário (1967), de Stuart Rosenberg; e, claro, Dois Homens e um Destino (1969), no original, Butch Cassidy and the Sundance Kid, de George Roy Hill, que será dos mais belos estudos sobre a amizade, dentro de uma lógica de Velho Oeste marginal. Aqui, os outlaws Paul Newman e Robert Redford formam uma única silhueta ociosa: a história repetiu-se, pois, com a dupla de ladrões de A Golpada (1973). .Alguns destes, e outros filmes, podem ser vistos também à luz de uma certa atitude política. A saber, Newman tornou-se um ator abertamente comprometido com as questões cívicas, participando no discurso da democracia liberal ao lado de colegas como Brando e Sidney Poitier, ao mesmo tempo que mostrava orgulho por constar na lista de inimigos de Richard Nixon. What else? Um dos últimos grandes papéis deste homem que chegou a trabalhar com Hitchcock (A Cortina Rasgada, 1966) foi o de um advogado alcoólico em busca de alguma forma de salvação num drama de tribunal, O Veredito (1982), com argumento de David Mamet e realização de Sidney Lumet, cineasta que quis imprimir a máxima verdade da sua estrela veterana. A estrela que viria a despedir-se da grande tela em Caminho para a Perdição (2002), de Sam Mendes, embora, na reta final da carreira, a sua presença no elenco de vozes da animação Carros (2006) não possa ser considerado um detalhe menor do currículo – isto pela correspondência com a paixão tardia por corridas de carros, que levou o ator a investir num percurso paralelo como piloto, aos 47 anos (em 1979 veio a alcançar o segundo lugar nas 24 Horas de Le Mans, e aos 70 foi o piloto mais velho a competir nas 24 Horas de Daytona, em 1995, integrando a equipa vencedora). De resto, nessa animação da Disney, ele projeta na personagem de Doc Hudson uma veterania com conhecimento de causa que traz ao novato Lightning McQueen ensinamentos preciosos sobre a vida na pista de corrida. Fora dela, morreu aos 83 anos, com um cancro do pulmão, tendo levado uma existência de adrenalina, amor e cigarros. Joanne Woodward: a paixão contínua .Falar de Paul Newman sem dedicar uma boa porção de caracteres a Joanne Woodward (agora com 94 anos e afastada da vida pública devido à doença de Alzheimer) seria um crime grave. E o testemunho mais bonito dessa nossa convicção surge através de uma série documental concebida pelo ator Ethan Hawke em 2022, The Last Movie Stars (disponível na Max), que ao longo de seis episódios procura tecer a narrativa epidérmica e emocional de um amor que espantou tudo e todos pelo modo como resistiu dentro de um meio propício à rotura das relações, ainda mais entre “concorrentes” diretos de profissão, sendo Joanne um autêntico animal de palco e ecrã. Nesse fabuloso documentário, onde Hawke cruza excertos de filmes com entrevistas de arquivo de ambos e diálogos via Zoom com as filhas do casal, para além de vários colegas entusiasmados com o projeto, vamos percebendo como não há aqui mares de rosas – e, apesar disso, foi possível sobreviver às tormentas. A certa altura ouve-se Paul dizer, acerca da dinâmica conjugal entre ele e Joanne: “Enlouquecíamo-nos um ao outro de várias maneiras. E há um equilíbrio maravilhoso nisso: assimétrico mas igualitário, como uma corrida às armas. Ela tinha os seus mísseis e equipamentos de terra, enquanto o meu arsenal estava em submarinos”. Assim viveram juntos durante 50 anos, desde que sentiram uma atração devoradora nos bastidores da Broadway (a peça era Picnic) até ao derradeiro suspiro dele, em 2008. .No cinema contracenaram nada menos que 17 vezes, numa evolução de papéis que pareciam escritos para traduzir em rigor as fases da sua vida; o último filme compartilhado foi o belíssimo e tão esquecido Mr. e Mrs. Bridge (1990), de James Ivory. Mas Paul sentiu-se ainda motivado a passar para o lado da realização. Porquê? Como se nota em The Last Movie Stars, a carreira de Woodward mirrara para que a do marido evoluísse, e terá sido o desejo de a compensar de alguma maneira pelo capítulo da “obrigação de ficar em casa a cuidar das filhas” que Newman a devolveu à luz plena do ecrã, dirigindo-a numa trilogia de obras que permanecem como modelo absoluto do quilate dramático dela e do olho de cineasta dele: Rachel, Rachel (1968), A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas (1972) e Algemas de Cristal (1987). .Depois da tragédia da morte por overdose de Scott Newman (1950-1978), filho do primeiro casamento de Paul, foi igualmente Joanne quem ajudou a promover os atos de filantropia do marido, os quais envolveram o financiamento de hospitais, uma fundação para auxiliar vítimas de toxicodependência e um campo de férias para crianças doentes, tudo com o lucro das vendas de produtos alimentares que traziam a cara de Paul Newman no rótulo... Gestos de “muito boas pessoas”, como os definiu o realizador Martin Ritt, um dos habitués da filmografia de ambos. Sobretudo, regressemos à sua química ardente em grande plano. A “paixão que escalda”, como aponta um dos títulos de Ritt. Aquela energia simultaneamente secreta e explícita que tanto emana da frase mais ríspida como do beijo mais veemente. Se existe algo a que possamos chamar magia do cinema, ela passou pelos corpos destas derradeiras movie stars, quais jovens impetuosos ou velhos apaziguados. Paul e Joanne foram uma imagem suprema do amor. Do combate vivo do amor.