Comícios de Amor (1964): uma viagem em Itália com o próprio Pasolini como repórter.
Comícios de Amor (1964): uma viagem em Itália com o próprio Pasolini como repórter.

Pasolini aqui e agora

Ainda ecoando o centenário do seu nascimento, Pier Paolo Pasolini volta a ser nome em destaque na atualidade cinematográfica e literária. Seis filmes em DVD e um livro de crónicas propõem um reencontro com uma obra que começa na herança do neo-realismo para abraçar a pluralidade de um pensamento avesso a ortodoxias.
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Eis o estranho paradoxo com que encerrou o nosso ano cinematográfico de 2023. Assim, conhecemos o discurso catastrofista com que a maior parte dos agentes do mercado declararam a morte do DVD (e do seu parente rico, o Blu-ray); ao mesmo tempo, chegou a esse mesmo mercado, com chancela da Risi Film, uma magnífica caixa de seis DVD, com outros tantos filmes de Pier Paolo Pasolini. Que aconteceu, então, para que um dos nomes de referência do moderno cinema europeu surja como “resto” de um determinado modelo de divulgação e consumo dos filmes?

Ninguém pode negar que a crise do DVD é bem real, mas importa não reduzi-la a uma explicação demasiado linear (“as pessoas passaram a consumir as plataformas de streaming…”), como se o seu metódico desaparecimento de muitas lojas físicas e virtuais tivesse sido decretado pelos próprios consumidores. Até porque qualquer olhar minimamente atento e disponível compreenderá que noutros mercados o DVD e, sobretudo, o Blu-ray evoluíram através de uma sofisticada especialização em títulos clássicos, frequentemente acompanhados de “extras” que, de modo atraente e pedagógico, sabem organizar as memórias cinéfilas que cada filme contém ou pode atrair.

Enfim, são clássicos, precisamente, que agora podemos descobrir neste conjunto de seis filmes. O título escolhido para a edição - “O cinema segundo Pasolini” - poderá ser discutido, e será por certo discutível, se nos lembrarmos da ausência de obras tão marcantes como Teorema (1968), implacável decomposição das regras do tradicional melodrama familiar, ou a célebre “Trilogia da Vida” - Decameron (1971), Os Contos de Canterbury (1972) e As Mil e uma Noites (1974) -, talvez o conjunto de filmes de Pasolini com maiores audiências em todo o mundo.

Isto sem esquecer que a edição também não inclui Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975), uma reconversão radical da obra de Sade, “refeita” como parábola política sobre o fascismo italiano em plena Segunda Guerra Mundial. Recorde-se que o filme chegou às salas a 23 de novembro de 1975, três semanas depois da data (2 de novembro) em que Pasolini foi assassinado em Ostia, na zona da grande Roma - contava 53 anos.

Ficção & documentário

Seja como for, não é de uma “retrospetiva” que se trata. A edição integra-se ainda nas muitas iniciativas que assinalaram o centenário do nascimento de Pasolini (a 5 de março de 1922, em Bolonha) e privilegia a primeira parte da filmografia de Pasolini, de 1961 a 1967. É um período em que o seu nome se destaca no panorama das “novas vagas” que pontuavam o mapa da produção europeia (não só em França, mas também, por exemplo, Espanha, Portugal ou Checoslováquia).

Reencontramos, assim, a “trilogia” que ajudou a defini-lo como personalidade fulcral na dinâmica criativa de uma modernidade cinematográfica transversal às mais diversas geografias e culturas: Accattone (1961), Mamma Roma (1962) e O Evangelho segundo São Mateus (1964) - este último recebeu um Leão de Prata (prémio especial do júri) no Festival de Veneza, no ano em que o Leão de Ouro foi para outro filme italiano, O Deserto Vermelho, de Michelangelo Antonioni. Há mais duas longas-metragens de ficção: Passarinhos e Passarões (1966) e Rei Édipo (1967). Pelo meio, encontramos aquele que será o objeto menos conhecido de toda esta coleção: o documentário Comícios de Amor (1964).

Eis uma coincidência que vale a pena reter: Comícios de Amor surgiu no mesmo ano em que, no nosso país, Fernando Lopes realizava o seu Belarmino, um clássico do Cinema Novo português. Para lá das muitas diferenças de temas e contextos, aquilo que os aproxima é a vontade de aplicar métodos de natureza documental capazes de transcender uma visão meramente “descritiva” das pessoas e dos lugares que são filmados. Lopes começa por fazê-lo através de entrevistas com Belarmino Fragoso (conduzidas por Baptista-Bastos), pugilista com um historial de vitórias adiadas que, através de uma dramaturgia de singular poesia, se transfigura em símbolo de um desencanto muito português. Pasolini, por sua vez, assume-se como repórter: vai para a rua e, com o seu microfone, questiona outros italianos sobre o seu entendimento do amor e do sexo.

Se pensarmos em certas reportagens televisivas dos nossos dias, apenas apostadas em explorar o pitoresco ou o sensacionalismo, o filme de Pasolini, feito há mais de 60 anos, impõe-se como um caso exemplar de genuíno trabalho documental - para mais, tratando o povo, não como um coletivo abstrato, antes como um labirinto plural de pessoas, sensibilidades e ideias que não pode ser reduzido a uma coleção de ”curiosidades” mais ou menos frívolas.

Nas filmagens de O Evangelho segundo São Mateus (1964): Enrique Irazoqui (intérprete de Cristo) e Pasolini.

A herança neo-realista

De onde provinha a agilidade documental de Pasolini? Pois bem, de um desejo de conhecer os contrastes e contradições dos cidadãos de Itália, de acordo com uma abertura aos temas e narrativas das classes populares que, obviamente, não era alheia à herança do neo-realismo, movimento que, através de autores como Luchino Visconti, Vittorio De Sica ou Roberto Rossellini começara, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, a transfigurar a paisagem do cinema italiano (e, em boa verdade, do cinema europeu).

Nesta perspetiva, Comícios de Amor não deixa de ser um prolongamento lógico de Accattone e Mamma Roma, respetivamente sobre um proxeneta dos arredores de Roma (Franco Citti, que se tornaria figura “fetiche” da filmografia de Pasolini) e uma prostituta que tenta mudar de vida (Anna Magnani, numa das mais espantosas composições da sua carreira). Nas suas primeiras longas-metragens, Pasolini assumia-se como um herdeiro político do neo-realismo, relançando o mesmo olhar crítico sem “copiar” a sua linguagem. Mesmo com todos os artifícios da ficção, estes são filmes em que a crueza do olhar preserva uma pulsão realista capaz de dar conta das condições de vida e morte dos mais pobres ou marginais.

De tudo isso nasceu também esse filme lendário que é O Evangelho segundo São Mateus, demarcando-se das regras das epopeias bíblicas que, na época, pontuavam a moda das “superproduções”, proveniente de Hollywood, mas com rodagens quase sempre realizadas em cenários europeus - lembremos que Ben-Hur, de William Wyler, O Rei dos Reis, de Nicholas Ray, e A Maior História de Todos os Tempos, de George Stevens, são, respetivamente, de 1959, 1961 e 1965.

Dizer que o tratamento do Evangelho por Pasolini é um ato “desafiador” e “polémico” acabou por se tornar um lugar-comum com imediato sucesso mediático, mas completamente cego às especificidades do filme. Na verdade, Pasolini não se distancia do texto bíblico. Bem pelo contrário, O Evangelho segundo São Mateus é um filme completamente “colado” a esse texto, recorrendo a intérpretes na sua maioria não profissionais para criar uma antologia de situações que, através da admirável fotografia a preto e branco de Tonino Delli Colli (responsável pelas imagens dos primeiros cinco título agora editados), nos devolve a memória simbólica de Cristo enquanto facto incontornável do nosso presente, como uma narrativa de austeras “vinhetas” - a palavra poderá ser tanto mais sugestiva quanto remete para uma noção ancestral de figuração, mas também para o universo da banda desenhada.

Silvana Mangano e Franco Citti, a rainha Jocasta e Édipo em Rei Édipo (1967).

“Édipo sou eu”

A atualidade de Pasolini no contexto português surge reforçada pela publicação do livro A Longa Estrada de Areia (Edições do Saguão, 2023 - tradução de João Coles). Na sua origem está um conjunto de crónicas encomendadas, em 1959, pela revista Successo: na companhia do fotógrafo Paolo di Paolo, ele próprio conduzindo um Fiat 1100 (cuja primeira versão surgira em 1937, tendo sido objeto de sucessivas transfigurações até 1969), Pasolini viajou pela costa italiana, registando as suas impressões numa série de artigos publicados no verão daquele ano.

No começo do posfácio a A Longa Estrada de Areia, Paolo Mauri resume de forma exemplar a exigência prática e poética - se quisermos ser políticos, diremos que a poesia nunca é estranha à praxis - que aqui encontramos: “No fundo, Pasolini buscava a felicidade.” Um pouco mais à frente, Mauri explicita o contexto (político, justamente) em que tudo isso aconteceu: “O sonho de Pasolini, e é uma história bem conhecida, colidiu com a moral e a cultura velho-burguesas interpretadas cada uma à sua maneira pela direita católica e pela esquerda comunista na busca de realismos ortodoxos.”

Daí também o carácter inclassificável de filmes como Passarinhos e Passarões e Rei Édipo. O primeiro, protagonizado pelo grande Totò (1898-1967), ícone lendário da comédia italiana, apresenta-se com uma estrutura de fábula em que o diálogo com os animais se pode cruzar com memórias políticas envolvendo personagens como São Francisco ou o dirigente comunista Palmiro Togliatti. O segundo foi o primeiro filme a cores de Pasolini, com direção fotográfica de Giuseppe Russolini: a tragédia de Sófocles - com Franco Citti como Édipo e outra admirável atriz italiana, Silvana Mangano, no papel de Jocasta - surge reinventada como parábola sem tempo (ou de todos os tempos), cruzando referências culturais e iconográficas que, em última instância, remetem para a história familiar do próprio Pasolini. Com uma ironia poética a que não seria alheio o seu obsessivo gosto realista, Pasolini definiu mesmo o seu Rei Édipo como a “história do meu complexo de Édipo”.

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