O cinema Nimas, em Lisboa, vai voltar a acolher o filme que há 50 anos (em setembro de 1975) serviu para a sua abertura oficial: Que Viva a Revolução! (1974), uma parábola política de Paolo e Vittorio Taviani, com Marcello Mastroianni no papel central, tendo por pano de fundo a unificação da Itália na primeira metade do séc. XIX. Será um dos títulos a integrar um ciclo da Medeia Filmes com um total de 51 filmes, em cópias digitais restauradas, assinados por 16 realizadores — começa amanhã, com O Grande Engarrafamento (1979), de Luigi Comencini, terminando a 3 de setembro com Violência e Paixão (1974), de Luchino Visconti. Além do Nimas, o ciclo arranca também no Cinema Charlot (Setúbal) e no Centro de Artes e Espectáculos (Figueira da Foz), para mais tarde integrar a programação do Teatro Campo Alegre (Porto). O ciclo foi designado como “Os Anos de Ouro do Cinema Italiano”. Tendo em conta que o filme mais recente, A Lenda do Santo Bebedor, de Ermanno Olmi, tem data de 1988, importa lembrar que essa foi uma década marcada por convulsões audiovisuais que abalaram a herança desses “anos de ouro” — por um lado, com a consolidação de muitas formas de populismo televisivo (recorde-se que Silvio Berlusconi criou a primeira estação privada de Itália, Canale 5, em 1980); por outro lado, com a decomposição das estruturas clássicas de produção, processo que viria a ser abordado por Nanni Moretti no filme O Caimão (2006). Sem esquecer que, ainda nos anos 80, com Ginger e Fred (1986), Federico Fellini foi um dos primeiros a dar conta dos fenómenos de degradação estética e ética no interior do espaço televisivo. Nada disto diminui a importância histórica e o valor artístico dos títulos agora programados. Assim, a partir das memórias do neo-realismo, a começar por Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini (é o filme mais antigo a exibir), e até Identificação de uma Mulher (1982), de Michelangelo Antonioni, será possível ver ou rever muitas obras que nos ajudam a compreender que, para lá do valor simbólico da Nova Vaga francesa e da pluralidade da indústria britânica (incluindo as suas ligações com Hollywood), não é possível traçar as linhas essenciais da modernidade cinematográfica na Europa sem passar pelos esplendores da produção italiana. Viagens em Itália .A vaga neo-realista, decisiva para muitos autores marcantes do cinema que se seguiu — de Jean-Luc Godard a Martin Scorsese — está representada por títulos emblemáticos como o já citado Roma, Cidade Aberta ou Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio De Sica, justificando-se um destaque muito especial para A Terra Treme (1948), de Luchino Visconti. Rodado numa comunidade piscatória da Sicília com intérpretes não profissionais, o trabalho de Visconti enraíza-se num fascinante paradoxo formal: a proximidade dos seres humanos e a filmagem nos lugares reais das suas vivências não decorre de nenhum espontaneísmo pueril; no caso de A Terra Treme, tudo isso é mesmo inseparável de uma mise en scène de sofisticada elaboração e, no limite, “teatralizada”. No caso de Visconti, semelhante visão foi sendo apurada e transfigurada através de filmes como O Leopardo (1963) ou Morte em Veneza (1971), este, na época do seu lançamento, ligado a uma sugestiva avalanche de polémicas sobre a "decadência" artística. No labor de Rossellini podemos reconhecer uma evolução paralela, apostada em superar as fronteiras narrativas e ideológicas do neo-realismo, gerando novas formas de encenação das relações humanas, mesmo (ou sobretudo) as mais íntimas. Lembremos os exemplos modelares dos filmes em que Ingrid Bergman foi dirigida por Rossellini, incluindo Stromboli (1950) e Viagem em Itália (1954), este último aplicando a ligeireza da “reportagem” para lidar com os enigmas transcendentais da revelação moral. Não faltarão outros filmes que contribuíram de forma decisiva para o prestígio global da produção italiana (alguns deles conquistando Óscares em Hollywood), continuando a ser citados como objetos canónicos de um cinema tão peculiar nas suas referências culturais como universal no seu apelo temático e simbólico. Serão os casos de A Doce Vida (1960) e Oito e Meio (1963), de Federico Fellini, ou ainda a “trilogia a preto e branco” com que Antonioni abriu as portas da década de 60: A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962). Através de Antonioni, deparamos mesmo com o tratamento em filigrana de uma questão “arquitetónica”, transversal a muito cinema contemporâneo: até que ponto os cenários urbanos em que vivemos são, de uma só vez, o espelho cruel e o perverso instrumento de uma asfixiante desumanização? .O nome de Pier Paolo Pasolini emerge como a exceção das exceções, tanto mais que, meio século depois do seu assassinato (ocorrido em Ostia, a 2 de novembro de 1975), a sua filmografia continua a questionar-nos sobre as contradições da condição humana e, sobretudo, os poderes que a afetam. É um dos autores com mais forte representação no ciclo, incluindo Salò ou os 120 Dia de Sodoma, perturbante conto metafórico sobre a repressão fascista cuja primeira exibição pública teve em lugar em Paris, três semanas depois da morte de Pasolini. Dele será possível reencontrar também Accattone (1961), título nuclear na afirmação de um realismo violentamente poético, Mamma Roma (1962), O Evangelho Segundo São Mateus (1964), Passarinhos e Passarões (1966), Rei Édipo (1967) e Decameron (1971). Bertolucci e os outros Para lá destes clássicos, seria, no mínimo, precipitado supor que os outros cineastas representados no ciclo, porventura menos conhecidos da maior parte dos espectadores, constituem uma espécie de “segunda divisão” da história do cinema italiano. Bernardo Bertolucci, figura notável da geração que veio depois dos neo-realistas, pode ser encarado como o fiel da balança de tais diferenças. Entre os seus títulos a exibir, destaquemos Antes da Revolução (1964) e O Conformista (1970) — o primeiro envolve toda uma reformulação do próprio conceito de política face às clivagens entre gerações; o segundo, a partir do romance de Alberto Moravia, é um estudo clínico sobre o “nascimento” de um fascista (uma das grandes interpretações de Jean-Louis Trintignant). .Títulos como Salvatore Giuliano (1962) e As Mãos sobre a Cidade (1963), de Francesco Rosi, emergem como exemplos do chamado “filme político”. Na época, a expressão definia um verdadeiro género “comercial”, abarcando não apenas as histórias que continham referências diretas a factos políticos, mas também as narrativas que, explicitamente ou não, desafiavam valores morais herdados de um passado mais ou menos próximo. Entre estes últimos, podemos citar os casos eloquentes de A Mulher-Macaco (1964), de Marco Ferreri, e Nossa Senhora dos Turcos (1968), de Carmelo Bene, relatos surreais de “usos e costumes” sociais, ambos inéditos no circuito comercial português. O que nos conduz a filmes como Outono Escaldante (1972), de Valerio Zurlini, ou Malícia (1973), de Salvatore Samperi. Para lá da sua popularidade, e também das suas diferenças de tom, neles encontramos sinais de toda uma iconografia erótica que nos pode ajudar a analisar as atribulações narrativas da sexualidade no cinema da época e, em boa verdade, também nas outras artes visuais. Para completarmos esse quadro de popularidade da produção italiana nas décadas de 1960/70 (não apenas internamente, mas em muitos outros mercados europeus, incluindo o português), devemos lembrar e celebrar o valor dos grandes artesãos: Dino Risi e Luigi Comencini. A sua dimensão artesanal decorre da capacidade de construir variações sobre os géneros dominantes (comédia, drama, policial, etc.), sem nunca perder uma relação direta, por vezes subtilmente crítica, com o presente da Itália e respectivos labirintos sociais. De Risi, citemos Uma Vida Difícil (1961) e O Profeta (1968). Quanto a Comencini, além de O Grande Engarrafamento, será forçoso um sublinhado muito especial para O Incompreendido (1966), seguramente um dos filmes mais espantosos que já se fizeram sobre a infância, nas margens da adolescência, como um tempo de inusitada (e incompreendida) solidão. .Atores e atrizes Impossível, por isso, resumir toda a variedade humana que encontramos nos 51 filmes deste ciclo — e escusado será dizer que essa variedade se enraíza numa riquíssima tradição de atores e atrizes (e respetiva direção) em que “drama” e “comédia” são paisagens cúmplices, sem fronteiras estanques. Afinal de contas, para lá de figuras lendárias como Alberto Sordi, Anna Magnani, Totò, etc., muitos destes filmes integram grandes intérpretes de diferentes origens, sem que isso colida com a sua verdade intrínseca. Entre as figuras mais radicais que aqui podemos encontrar está a personagem do americano Jack Nicholson em Profissão: Repórter (1975), obra-prima de Antonioni sobre um jornalista que “adquire” a identidade de alguém que morreu, encontrando como companheira uma jovem (sem nome) interpretada pela francesa Maria Schneider. Numa célebre cena num carro descapotável, ela vai no banco de trás e diz que lhe quer colocar uma pergunta, “só uma, sempre a mesma”: “De que é que andas a fugir?” Ele responde apenas: “Vira as costas para o assento da frente.” Schneider levanta-se e, com um olhar de cristalina felicidade, contempla a estrada que “foge” do seu olhar. Eis o milagre do cinema: o instante contém uma promessa de eternidade, neste caso vivida em língua inglesa, mas com sensibilidade italiana.