Maria Pomianowska com uma suka.
Maria Pomianowska com uma suka.

“Para nós, polacos, a música de Chopin é muito importante e é como se fosse a nossa identidade”

Maria Pomianowska, multi-instrumentista, vocalista e compositora, falou ao DN antes da vinda a Lisboa para o concerto de encerramento da presidência polaca da UE, neste domingo 22 de junho.
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Começou a tocar violoncelo aos 7 anos. Tem formação em música clássica. Qual a importância desta base clássica na sua música?

Sim, é verdade, iniciei a minha educação musical aos 7 anos de idade. Entrei na escola de música a tocar violoncelo. Este tipo de educação clássica revelou-se muito útil nas minhas aventuras musicais posteriores. Formei-me na Academia de Música como violoncelista, mas, durante este período de estudos, comecei a viajar para a Índia. Comecei o meu interesse pelas culturas asiáticas. E agora sou professora na Academia de Música, mas ensino instrumentos completamente diferentes, não violoncelo, mas um pouco parecidos.

Falou das suas viagens à Índia, mas também viajou para outros países como China, Coreia, Japão, para o Médio Oriente. Como foi essa experiência com instrumentos não-europeus?

Durante os meus estudos na Academia de Música, fui pela primeira vez à Índia. Foi em 1984. No início, foram uns meses, porque precisava de voltar para a Polónia para continuar os estudos. Passei dez anos a viajar regularmente para a Índia. E comecei, realmente, a ter uma relação muito forte com a música indiana. Depois, nos anos 1990, interessei-me pela música clássica indiana. É muito importante, porque é completamente diferente da música clássica Ocidental. Eles têm a sua própria teoria. Têm os seus próprios instrumentos. É uma ideia completamente diferente sobre o que é belo, como é o ritmo dessa música, essa harmonia. Depois disso, passei muito tempo na Coreia. Viajei para a China. E o período mais importante da minha vida foi entre 1997 e 2002 - passei-o em Tóquio. Foi uma época realmente extraordinária, pois fiz centenas de concertos. E colaborei com o grande violoncelista americano, Yo-Yo Ma. Eu estava a compor músicas para ele. E atuámos com muitos artistas maravilhosos do Extremo Oriente. Sabe o que também foi muito tocante para mim? Toquei várias vezes com a Imperatriz Michiko e também com a filha, a princesa Sayako. É uma flautista muito talentosa e sua majestade Michiko é uma pianista e harpista muito talentosa. Todos os anos, tocávamos várias vezes. Era uma família maravilhosa. E o meu melhor amigo era o falecido príncipe Takamado. Infelizmente, faleceu com uma idade não muito avançada. Foi nessa altura que comecei a criar fusões interculturais mais a sério. E também fusões com a música de Chopin. Porque eu tinha instrumentistas japoneses a tocarem comigo a Mazurka de Chopin. O som era grandioso. Às vezes soava muito bem, outras vezes, soava estranho. Foi nessa altura que comecei a pensar neste tipo de criação. Continuei a tocar violoncelo, mas também sarangi indiano, erhu chinês, morin khuur mongol e kamancheh iraniano. Graças a estas experiências, pude aprender e estudar técnicas de tocar muito diferentes do violoncelo.

A Maria reconstruiu dois instrumentos polacos antigos - a suka de Bilgoraj e o violino de Plock. Como é que essa ideia surgiu?

Sim, e são os meus instrumentos principais agora. Estou a dar aulas na Academia de Música e a tocar esses instrumentos que reconstruí. É importante perceber que a Polónia é, digamos assim, uma monocultura de instrumentos de arco. Como o violino e violoncelo. O violino é omnipresente em todas as regiões do país e constitui a base de todos os tipos de grupos musicais. Antes de o violino começar a ser tocado na Polónia, os chamados violinos de joelho eram especialmente populares e famosos no país. Este tipo de instrumento de arco, que se tocam sobre os joelhos, foi extremamente popular na Polónia nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. E a popularidade desta posição, e deste tipo de instrumentos, já é notada pelo teórico musical alemão Martin Agricola na sua obra de 1545. No século XVI, descreveu que os polacos tocavam diferentes tipos de violino, segurando-os na posição vertical e tocando, o que é muito importante, com a chamada técnica da unha, em que se colocam os dedos entre as cordas. Desta forma, produzem-se notas diferentes. Esta técnica desapareceu completamente na Polónia no início do século XX, mas hoje em dia voltou a ser popular. Este tipo de execução é popular na Índia, na Mongólia, em algumas zonas do sul da Europa, em países como a Bulgária. Portanto, é uma longa história, mas aconteceu, por coincidência, que a informação sobre isto me tenha chegado. Um dia organizei na Polónia, na Academia Chopin de Música, um concerto com os alunos e os meus amigos, uma peça chamada Magia do Arco. Reunimos instrumentos de arco do mundo inteiro e eu fiz algumas composições, improvisámos, etc. E uma noite antes do concerto, o morin khuur, o meu instrumento mongol, teve um grande problema porque o cavalete partiu-se. Mas eu tinha uma composição muito importante para tocar. Então, nessa noite, um amigo disse: “Tens de ir a um fabricante de violinos, ele é muito habilidoso e arranjou um violino numa noite.” Então, fui ter com ele e ele perguntou-me: “Ok, eu ajudo-te, mas como é que tocas?” Eu expliquei que era difícil e a técnica. E sabe uma coisa? Este homem, nessa altura estávamos em 1992, já reconstruía instrumentos musicais polacos, com fins exclusivamente musicais. Mas ninguém conseguia tocar aquele instrumento, porque ninguém na Polónia sabia tocar com a técnica das unhas. E perguntou-me: “Maria, e, se depois de teres viajado pelo mundo, te concentrasses finalmente na tua própria cultura?” Foi um verdadeiro desafio. Assim, a partir de 1992, iniciei um trabalho muito intensivo e posso dizer apenas algumas palavras sobre estes instrumentos, como o violino de Plock. Em 1985 foi descoberto um violino de Plock durante umas escavações realizadas na cidade. Plock é uma cidade medieval. Assim sendo, o nome violino de Plock vem desta cidade onde foi encontrado o espécime original, que foi datado de meados do século XVI. Assim, provavelmente, este instrumento passou 400 anos debaixo de terra. A sua singularidade foi atestada pelo tipo muito raro de ponte e pela sua estrutura. Sabíamos que aquela estrutura era muito antiga. No que diz respeito à suka, a história é diferente, porque esta foi reconstruída com base em fontes ilustrativas, apenas fontes iconográficas, uma vez que não havia nenhum original. Assim, trabalhei com um fabricante de violinos para reconstruir tudo basicamente de raiz. Foi o meu amigo Andrzej Kuczkowski, que faleceu há 15 anos, quem reconstruiu a suka a partir de uma imagem. Era uma aguarela pintada pelo nosso famoso pintor polaco Wojciech Gerson e datada de 1895. Esta aguarela encontra-se hoje no Museu Nacional de Varsóvia. É uma fonte de informação muito importante sobre o instrumento. Portanto, não foi recriado do nada. Mas logo no início deste processo de reconstrução, surgiu uma questão fundamental para mim: até que ponto este processo era uma reconstrução e até que ponto isso exige uma abordagem criativa? Que parte do instrumento será reconstruída e que parte eu própria crio como um conceito completamente novo? A minha proposta era reconstruir um método de tocar. Até mudei o tamanho do instrumento para ficar um pouco maior. Por intuição. Mas depois os cientistas fizeram alguns cálculos no computador e disseram: “Sim, ficou bom”.

Confirmaram a sua ideia?

Sim. A minha proposta era que, com base na informação mais detalhada possível, eu reconstruísse o instrumento, mas partindo da premissa da continuidade do desenvolvimento do instrumento. O que teria acontecido se este tipo de instrumento não tivesse desaparecido, se se tivesse desenvolvido, à semelhança de outros violinos, como os indianos, os dos Balcãs e da Mongólia? Se a suka não tivesse desaparecido no início do século XX, talvez este instrumento se desenvolvesse como eu o recriei. Mas não vou dizer às pessoas que este instrumento soava 100% como o toco. Isso é completamente falso. As cordas são diferentes, tudo é diferente. Com o meu amigo Kuczkowski decidimos mudar algumas coisas, para fazer um instrumento com um bom som, um som arcaico, antigo, mas realmente bom. Porque quero tocar em concertos e quero conectar-me com o público, não assustá-lo [risos]. Em parte, a suka e o violino de Plock são antigos, e em parte são completamente novos. O que também é muito importante, para mim, é que consegui colocar estes instrumentos, graças aos meus muitos amigos na Polónia, a nível académico. Os meus alunos, tocando estes instrumentos, podem fazer a licenciatura e o mestrado. Como se faz com o violino

Já falou da sua cooperação com músicos internacionais. Num mundo tão dividido como o de hoje, tocar juntos, aprender a música uns dos outros, os instrumentos uns dos outros, é mais importante do que nunca?

Sim, é muito importante. Eu não esperava, quando comecei a minha grande aventura pelo mundo e a ligar as pessoas através da música, que chegássemos novamente a esta escuridão. É inacreditável. Mas através da música, temos uma grande oportunidade de unir as pessoas. Porquê? Porque através da música podemos compreender-nos melhor do que através das palavras. Muitas vezes, quando vou, por exemplo, ao Paquistão, ao Senegal ou aos Estados Unidos, sento-me com os músicos e tocamos, nem precisamos de palavras. Muitas vezes cooperei com músicos que não conheciam nenhuma das línguas que eu conheço. No Senegal, por exemplo, trabalhei com uns músicos que só falavam wolof, nem inglês, nem francês, só wolof. Mas entendíamo-nos. A música, o poder da música é realmente muito grande.

É impossível falar da Polónia e de música sem falar de Chopin. É o maior símbolo da música polaca?

Sim, a música dele é como a nossa identidade. Quando era estudante, criei o meu primeiro projeto sobre as origens da música de Chopin. Ninguém questionava que a sua música estava repleta de inspiração da música tradicional polaca. Mas o costume é que a música tradicional e a música clássica coexistam em ambientes separados. Portanto, o palco folk é único e completamente diferente do da música clássica. E nos anos 1990, criei Chopin em estilo folk. Fiz centenas de concertos por todo o mundo com este projeto. As fontes da música de Chopin eram a música folk da região onde ele nasceu. Assim como as suas mazurcas e algumas outras composições muito próximas da música popular polaca. Foi um choque para muitas pessoas, porque criei um projeto que combinava estes dois mundos. Passados 15 anos, criei Chopin nos Cinco Continentes. Foi uma tentativa de encontro multicultural, cuja base era a música de Chopin. Mas, em cada peça, eu acrescentava a minha própria composição ou o meu próprio arranjo. Chopin no Japão, por exemplo, foi muito interessante, porque encontrei uma música de Chopin e uma música japonesa muito popular, Kojo no Tsuki. Esta é uma canção sobre um castelo antigo. Então, combinei as duas e tudo se encaixou. É difícil, porque só alterei algumas notas. Compreendi que isso é algo único na música de Chopin, faz parte da sua genialidade, essa ligação à música folclórica, tão flexível, tão única. Que pode ser combinada com qualquer tipo de instrumento. Os meus músicos tocam instrumentos africanos, japoneses, chineses ou persas. E soa bem. Esse é o segredo da sua singularidade. Além disso, o ritmo da mazurca pode ser encontrado em 70% da música de Chopin, é por isso que reconhecemos a sua herança como fortemente ligada à música popular polaca. Ele compõe polonaises, a dança nacional da Polónia. Portanto, é claro que, para nós, a sua música é muito importante e é como se fosse a nossa identidade.

A Maria vem a Lisboa no domingo, 22 de junho, para o espetáculo multimédia Em Nome da Terra, que assinala o encerramento da Presidência polaca do Conselho da UE em Lisboa. O que pode o público português esperar do concerto de domingo no Teatro São Luiz, em Lisboa?

O espetáculo apresenta a banda sonora do filme Peasants [Em Nome da Terra, em Portugal]. O compositor deste projeto é Lukasz Rostkowski. É um projeto incrível com oito músicos a tocar. Durante o concerto, assistiremos a alguns fragmentos, a pequenas partes do filme. Este filme é absolutamente único e tão belo, como uma pintura. Penso que será uma combinação de música polaca, da música do filme e de maravilhosas pinturas ao vivo. Acho que as pessoas vão gostar.

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