"Culturalmente, Portugal é um país que tem uma relação fortíssima com o passado"
O seu novo livro é este Fantasmagorias do Retorno - Portugal e a nostalgia colonial. O que esconde este título?
É uma reflexão sobre um tema fundamental, que é o retorno para a cultura portuguesa, para todas as representações dessa cultura. O retorno é um tema importantíssimo, um título de obras, é uma experiência histórica que marcou as descolonizações. De facto, sabemos que tem essa imensa tradição. Chamar aos retornos fantasmagorias é projetá-los num espaço que lhe dá representação das fantasias, dos fantasmas do retorno. E, de certo modo, alude ao facto que o retorno, na verdade, pelas condições em que ocorre, é sempre, de algum modo, impossível. A não ser que haja um forte investimento de idealização.
Mas o retorno aqui, e estamos a falar sobretudo de África e dos portugueses que vieram de África durante a descolonização, não é o dito retorno a Portugal, é sim a possibilidade de um retorno à África?
Exato. Antes de tudo, o reconhecimento da existência de uma nostalgia por África muito forte, que é também uma saudade. É preciso encontrar justamente uma relação entre nostalgia e saudade. Eu diria que a diferença principal entre os dois termos é que a saudade idealiza o possível retorno. E é, como sabemos, muito próxima da cultura portuguesa. E, portanto, quando nós temos um país como Portugal, com uma experiência histórica em África tão grande e relativamente recente, essa presença de uma nostalgia africana, de certo modo, cria as condições para imaginar um futuro retorno. Mas é um retorno ao passado, ou seja, é um retorno inviável.
Ou seja, a nostalgia ao contrário da saudade, não tem hipótese de ser morta. Pode-se matar a saudade, mas não se pode matar a nostalgia.
De certo modo, sim. Há várias leituras. A grandeza de palavras como saudade, nostalgia, e melancolia, se nós quisermos acrescentar também a dimensão filológica e psicanalítica, é que são palavras que não significam uma única coisa. Portanto, é muito importante entender como são usadas, quais são os contextos a que remetem.
Neste caso, o retorno é impossível, pois não é só espacial, é a uma época que já não existe?
Na própria construção do significado de nostalgia, a nostalgia começa com uma impossibilidade de retorno espacial. Mas há um momento, e há um filósofo, Hegel, que faz isso, que transfere a nostalgia do espaço para o tempo. Portanto, é a infância, a juventude, um tempo perdido. E aí a nostalgia fica com essa duplicidade espaço-temporal.
Vemos em Portugal muitos sinais dessa nostalgia do retorno, muitas vezes em obras de divulgação que são publicadas, sobre postais antigos de Lourenço Marques, a atual Maputo, ou imagens de Luanda, mas também surge na literatura, por grandes escritores como Lobo Antunes. Esta ideia de nostalgia de África está bem presente na literatura portuguesa?
Está absolutamente disseminada em muita literatura portuguesa, direta ou indiretamente. Estudo vários objetos, não só literários, mas também de cinema, de música, de teatro, que trabalham esse tema. Do ponto de vista literário, temos dois grandes grupos, para sintetizar, um grupo que faz da nostalgia uma espécie de mercadoria contemporânea. Ou seja, a nostalgia é um produto comercial. Dentro do capitalismo, há uma imensa tradição de estudos sobre isso, a nostalgia, na época da modernidade, é uma mercadoria. Portanto, permite comercializar muitas coisas.
Estamos, em Portugal, a falar de centenas de milhares de pessoas que podem sentir essa nostalgia...
A nostalgia encontra um objeto de consumo, pode ser imagens. A fotografia desempenha um papel fantástico, porque é uma espécie de elo do presente com o passado. Ou testemunhos, ou reconstruções da Luanda que era, de Lourenço Marques, assim como era, etc. Idealizadas. E, portanto, há esse grande grupo de produtos culturais de consumo. Depois há outro grupo, também visível na literatura contemporânea: Dulce Maria Cardoso, Paulo Faria, Isabel Figueiredo. Há muitos autores, realmente. O próprio António Lobo Antunes. E percebem as ameaças que vêm de um uso incontrolável da nostalgia do passado em África e produzem uma literatura que tem um caráter critico em relação à noção dessa nostalgia do passado africano. Portanto, nós temos algumas obras críticas que tratam do tema, do sentimento, do conceito, digamos assim. Mas mostrando esse claro-escuro que caracteriza o uso do passado no presente, o uso do passado de África no presente. E depois temos, por outro lado, um uso muito grande da nostalgia como mercadoria. Ou seja, como algo que permite comercializar melhor produtos que se referem àquele passado.
Itália também tem um passado colonial: Somália, Eritreia, Líbia, Etiópia. Existe alguma fantasmagoria do retorno, como em Portugal?
É diferente. A experiência colonial italiana é uma experiência colonial enterrada e um pouco recalcada. Um pouco removida. Há alguns trabalhos históricos, alguns historiadores que trataram do tema, mas ficou um pouco circunscrito ao meio académico. Do ponto de vista do sentimento comum, há pouca nostalgia hoje do passado em África. Algumas coisas saíram da literatura. Temos alguns, por exemplo, escritores descendentes de famílias que moraram na África colonial italiana. Mas é muito mais circunscrito. O que surpreende no contexto de Portugal, diferencialmente, são as dimensões do idealismo africano que há.
Falamos aqui de África, mas Portugal teve um império que durou 600 anos e que primeiro foi centrado na África, depois na Ásia, a seguir o Brasil, volta a ser a África. Nesta descolonização recente, em que há pessoas que a presenciaram, temos também aquelas que vieram de Goa, ou que tiveram a experiência de Macau. Esta nostalgia não é só em relação a África, é geral?
Acho que tem um potencial geral. Na verdade, a nostalgia, se quisermos generalizar, é sempre um modo de usar o passado. É uma forma de relação com o passado. E, portanto, qualquer passado, teoricamente, pode gerar um sentimento nostálgico, que é uma tentativa de superar a melancolia da perda. Psicanaliticamente, a melancolia é o luto que não consegue identificar o objeto, portanto, é uma infinita palavra sobre um assunto que não se sabe bem focalizar, definir. E, portanto, acho que são formas que criam uma relação com o passado e que tentam tornar o passado um passado próprio. Há uma definição muito bonita de nostalgia, mais da tradição dos estudos norte-americanos sobre o passado, que acho que explica bem um pouco o funcionamento, e rapidamente, da nostalgia. A nostalgia é, de acordo com essa definição, o passado sem culpa. Ou seja, o passado é limpo, o passado onde são afastadas, digamos assim, as responsabilidades, e tudo se torna uma espécie de autorrepresentação.
Neste caso português, em estamos a falar do colonialismo, isso tem um peso ainda mais forte?
Muito forte, muito complexo. A nostalgia não é inteiramente má, não é inteiramente boa, mas é preciso saber como funciona, porque se nós não imaginarmos como funciona, o perigo que se cristalize uma ideologia sobre o uso do formato do passado, é muito forte. Ou seja, dizer, "olha, nós éramos um grande povo quando estávamos na África, hoje não somos mais", é um uso ideológico da nostalgia.
E acha que isso, daquilo que conhece de anos e anos dedicado aos estudos portugueses, marca a forma como são os portugueses, mesmo pessoas que não tiveram essa relação com a África?
Há uma famosa consideração de Eduardo Lourenço sobre Portugal, comparado com Israel, dizendo que para Portugal o Messias é o passado. E isso mostra a importância da relação que se cria com o passado. A expectativa, e aqui nós vamos para a saudade, que admite essa expectativa, do retorno ao passado. Culturalmente, Portugal é um país que tem uma relação fortíssima com o passado, e por isso que todas as interferências de um filtro, de uma triagem nostálgica, podem criar representações que são muito diferentes, que não são erradas. Toda gente tem direito à nostalgia. A nostalgia também é um direito, não é só um abuso, é um direito. Mas é preciso sempre considerar que tem essa transição subjetiva e pessoal. A nostalgia é o uso do passado, mas não é o passado. A ideologia, pelo contrário, diz que a nostalgia é o passado. Então o que tento fazer no ensaio é mostrar o funcionamento deste objeto complexo. Que acho muito interessante, dentro de um arquivo que é o arquivo que eu tenho acesso, ou seja, são as representações culturais, ou seja, literatura, música, cinema, televisão. Por exemplo, Depois do Adeus é uma série que coloca um tema de uso do passado. No teatro também, com Joana Craveiro. É o tema da memória de maneira mais geral. O que eu tento esboçar são duas coisas, são duas coisas essencialmente. Uma é a ideia de uma nostalgia multidirecional, como os estudos de memórias agora reconhecem na própria memória. Ou seja, a multidirecionalidade da nostalgia e da memória é uma multidirecionalidade de acordo com a qual eu tenho uma experiência, ou os meus pais tinham uma experiência, a minha família tinha uma experiência, mas nessa experiência costuro outras experiências que não tenho e que extrapolo da televisão, da experiência de outros. Ou seja, na verdade, como os estudos das memórias mostram, há uma belíssima metáfora de um sociólogo francês que diz que a memória é como uma espécie de mala onde as roupa são misturadas, as próprias e as impróprias. Mas a memória é isso. A nostalgia também é própria e imprópria. Por isso que é preciso não a absolutizar, manter esse ponto de vista relativo, que é considerá-la como uma reconstrução do passado, onde a parte pessoal pode ser grande. A segunda coisa que eu faço no ensaio é tentar democratizar a nostalgia, no sentido que é um sentimento que foi sempre considerado preso no passado, ou seja, conservador. O próprio Marx condena a nostalgia como um sentimento ultraconservador. Eu acho que, pelo contrário, uma nostalgia consciente que fecha as contas com o passado pode tornar a nostalgia um sentimento do futuro. E, portanto, no fim eu tento fazer uma pequena reflexão sobre, através dessa radicalização no sentido da nostalgia, como a nostalgia efetivamente é uma base para poder pensar, para poder criar um pensamento de futuro.
Uma última pergunta que tem a ver com aquilo que são os portugueses e a forma como eles são referenciados para esse passado. Nós temos como grande poeta, como grande referência, Camões, que viveu no século XVI, no século dos Descobrimentos, é um homem que conheceu a África, conheceu a Índia, conheceu a Indonésia, conheceu a China, e escreve sobre isso n'Os Lusíadas. Essa nostalgia pelo passado começa logo neste culto d'Os Lusíadas, ou Os Lusíadas são mais do que isso?
Acho que já estava com Os Lusíadas a nostalgia do passado. Já estava, já era um sentimento que estava. As viagens sem retorno são matrizes de nostalgia. O que Camões faz é conseguir criar, digamos assim, um quadro absolutamente harmónico com todas as contradições e os conflitos do país. O país do ultramar, o país da terra, os ricos, os pobres, os épicos, os antiépicos, os exaltadores e os polémicos. Está tudo lá, realmente.
Ou seja, Camões exalta a nação, mas ao mesmo tempo há n'Os Lusíadas crítica à nação.
Exatamente, como no caso do Velho do Restelo, do Adamastor, etc. O que acho que é importante é isso. É preciso sempre entender Os Lusíadas e Camões distinguindo Camões dos camonismos. Os camonismos são os usos de Camões que toda a gente tem o direito de ter. A minha leitura é a minha leitura, a sua leitura é a sua leitura. São perfeitamente disponíveis. Agora, Camões pode ser outra coisa em relação aos nossos camonismos. É um pouco assim a nostalgia em relação ao passado. Ou seja, a nostalgia permite entender que talvez o passado não seja aquele que imagino, seja outra coisa. Mas se aceito o passado assim como eu imagino, assumo com imaginação, faço uma coisa interessante.