Se é verdade que houve “um tempo em que os animais falavam”, a literatura e o cinema há muito integraram tal hipótese como coisa natural e exuberante. Observe-se o mundo dos macacos. No universo da produção de Hollywood, pode mesmo dizer-se que essa é uma verdade adquirida desde os tempos heróicos de 1968, com Planet of the Apes/O Homem que Veio do Futuro, uma realização de Franklin J. Schaffner com Charlton Heston no papel central. Agora, com a estreia de O Reino do Planeta dos Macacos, dirigido por Wes Ball, é caso para utilizar outra frase épica: a saga continua!.Os espectadores fiéis saberão que muita coisa aconteceu nestas quase seis décadas de convivência cinematográfica entre humanos e macacos: uma dezena de filmes, para sermos exactos. Assim, o primeiro, baseado no romance Le Planète des Singes (1963), do francês Pierre Boulle, gerou mais quatro títulos, o último dos quais, Batalha pelo Planeta dos Macacos, surgiu em 1973, com assinatura de J. Lee Thompson. Uma nova “adaptação livre” do livro de Boulle, Planeta dos Macacos, aconteceria apenas em 2001, com Tim Burton a assumir a realização..Os muitos problemas de produção do filme de Burton não impediram uma boa performance comercial, levando a prever uma sequela que, de facto, não se concretizou — confrontado com a possibilidade de a dirigir, o próprio Burton declarou que preferia “lançar-se de uma janela”. Resumindo, o assunto só seria retomado em 2011, com Planeta dos Macacos: a Origem, de Rupert Wyatt, já não uma “adaptação”, antes uma história inspirada na “premissa” de Boulle — o novo filme é o quarto da nova série..Personagens e computadores.Para recordarmos os ziguezagues de aventuras e personagens de todos estes filmes necessitaríamos de várias páginas e muitos milhares de caracteres. Seria uma exposição entediante, até porque O Reino do Planeta dos Macacos tem o cuidado de enquadrar a ação com informações básicas que permitem a orientação do espectador, mesmo não conhecendo os títulos anteriores..Lembremos apenas que entre os antepassados das peripécias agora narradas está a figura emblemática de César, líder dos macacos. A sua personagem consolidou-se nos títulos finais da década de 1970, tendo ganho especial importância nos dois filmes dirigidos por Matt Reeves — Planeta dos Macacos: A Revolta (2014) e Planeta dos Macacos: A Guerra (2017) —, interpretado por Andy Serkis, especialista na arte de composição através da técnica de “motion capture”. A saber: as filmagens são feitas com actores, depois transfigurados através de computadores nas personagens fictícias (neste caso, os macacos)..Ainda que evitando o novo-riquismo crítico (?) que consiste em celebrar os chamados efeitos especiais como um fim em si mesmo, importa sublinhar a importância do sofisticado desenvolvimento dessa técnica, em particular depois do magnífico As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne (2011), de Steven Spielberg (também com Andy Serkis no elenco, interpretando o Capitão Haddock). De facto, a dimensão física dos macacos atingiu um grau de “realismo” que os faz superar qualquer noção de bonecos animados — são corpos vivos e vulneráveis, com rostos de inusitadas nuances emocionais..Tudo isso é fundamental para a definição desta nova aventura em que os macacos estão divididos em clãs — um pacifista, que criou laços de cumplicidade com as águias; outro que se define como herdeiro de César, embora tendo seguido um caminho bélico de grande agressividade. No meio das respectivas tensões, isolados e frágeis estão os sobreviventes dos humanos, agora uma raça dominada..Bom selvagem?.Para lá do lugar que ocupa no interior da “franchise” do “Planeta dos Macacos”, este é um filme que, ao contrário de muitas grandes produções dos últimos anos (sobretudo no domínio dos super-heróis), sabe que o espectáculo nasce, não da acumulação gratuita de pirotecnia técnica, mas da arte primitiva de construir um script. Daí o destaque para o argumento assinado por Josh Friedman, ele que já colaborou com Steven Spielberg (Guerra dos Mundos, 2005) e James Cameron (Avatar: O Caminho da Água, 2022)..Reencontramos um espírito de aventura que, por assim dizer, virou do avesso a inspiração original do romance de Pierre Boulle. Agora, os humanos — simbolizados pela personagem de Mae (Freya Allan), uma amazona transformada em guerreira solitária — são um grupo fragmentado que apenas tem a “vantagem” de conhecer o poder das armas de fogo. Daí que O Reino do Planeta dos Macacos vá consolidando uma fábula de modelar classicismo, centrada na crença (talvez na descrença) de uma serena convivência com os elementos na natureza..Nesta perspectiva, fará sentido reconhecer em O Reino do Planeta dos Macacos um novo capítulo, de uma só vez tecnológico, figurativo e narrativo, de reconversão das imagens da própria natureza. Tubarão (1975), de Spielberg, inaugurou esse processo em que se tornou impossível encarar a natureza como um território de automática redenção. Agora, ficamos a pensar na necessidade de reavaliar a própria noção de “bom selvagem”.