Ator regular do cineasta Pablo Larraín, com quem fez uma trilogia de filmes sobre a ditadura militar de Augusto Pinochet - Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e Não (2012) -, participando ainda na comédia negra do último ano O Conde, centrada nesse ditador vampiro, Alfredo Castro não poderia ser melhor escolha para interpretar, desta vez, Salvador Allende. Como se a experiência ficcional de uma era proporcionada por um conjunto de títulos só pudesse culminar nessa figura de topo da narrativa do Chile, o presidente deposto em 1973 pelo golpe de Estado do general Pinochet.Com um trabalho de maquilhagem impressionante, que torna o intérprete quase irreconhecível em virtude das manifestas parecenças com a personagem histórica, Castro assume então a alma dos quatro episódios de Os Mil Dias de Allende, a minissérie de Nicolás Acuña esta terça-feira (22.10h) em estreia no TVCine Edition e TVCine+, que expõe os obstáculos contínuos à governação do líder chileno. São mesmo os mil dias do seu mandato que aqui se retratam, desde a campanha presidencial até ao golpe de 11 de setembro; data cujos 50 anos foram assinalados no Festival de San Sebastián de 2023, onde se viu pela primeira vez esta produção televisiva.Misturando imagens documentais com a dramatização do início dessa década de 70 no Chile, o thriller político de Acuña mune-se da energia muito própria dos bastidores de um novo regime, aquele tipo de movimentações só possível de reproduzir com algum rigor em função de uma testemunha privilegiada. Essa testemunha foi Joan Garcés, um advogado espanhol que se tornou conselheiro pessoal de Allende, e que na série corresponde à personagem de um estudante chamado Manuel Ruiz - precisamente o jovem que, na cena de abertura de Os Mil Dias de Allende, vemos dentro do Palácio Presidencial sob ataque, a assumir um compromisso com o presidente que tiraria a própria vida minutos depois... Prometeu-lhe Garcés/Manuel Ruiz que iria sair ileso da sede de La Moneda para transmitir ao mundo o que ali se passara, e as transformações sociais refreadas pelos opositores da democracia. Uma promessa cumprida através da publicação de livros de memória e denúncia, mas também, mais consequentemente, através do papel que o advogado teve na prisão de Pinochet em 1998. .A destruição da revolução construtiva.A série parte, então, do olhar do jovem tímido e da referida proximidade calorosa de Salvador Allende Gossens (1908-1973), médico e socialista que simbolizou a esperança da América Latina antes de se abaterem sobre o Chile os tempos sombrios da ditadura. É por meio desse ângulo humano que cada episódio fura a intimidade do círculo político do líder e observa a força do seu carisma, quer na dinâmica das salas e corredores, quer na linguagem familiar, sentindo-se a alegria palpável dos primeiros momentos da vitória democrática e o perigo posterior das artimanhas dos seus inimigos, que vieram a desembocar na alta traição do generalzinho sorrateiro e ambicioso....Com Allende, que dava à palavra “revolução” um sentido construtivo, negando o verbo “destruir”, havia no ar uma crença no futuro que os adversários procuraram desestabilizar, desde o início, através de um clima de insegurança criado para dar a ideia de que o problema vinha do interior do poder.Isso, mas também as ambiguidades da esquerda (que se acentuaram com a visita de Fidel Castro ao Chile), a errónea associação de Allende ao comunismo e o apoio dos Estados Unidos às Forças Armadas, são tudo capítulos e detalhes que moldam os episódios de Os Mil Dias de Allende encabeçados por um intérprete à altura, com a prótese facial e os óculos de massa a garantirem uma espantosa semelhança física. De resto, Alfredo Castro é todo ele firmeza de pose e bailado entre o registo formal e informal do homem. Um ator que dentro do set conheceu a magia de dar vida a uma figura emblemática, mas que, fora dele, levou com as manifestações de ódio de um grupo de extrema-direita que se plantou no exterior do Palácio de La Moneda, durante as filmagens, a insultá-lo.“Por um lado, havia todo o entusiasmo de me sentir naquele papel, historicamente tão importante, com os seus discursos, as suas palavras… Tudo era pura emoção, puro corpo”, disse em entrevista ao jornal El País em abril. Mas depois, o filme cá fora era outro: “Foi como viver duas realidades paralelas”..Confissão de alguém que se diz mais “allendista” do que propriamente de esquerda - ser um corpo com agitação política, para lá da responsabilidade de o representar, parece pois acrescentar a esta série um toque de verdade superior ao próprio uso dos excertos de arquivo documental e às convenções do drama.