Em boa hora nos chega uma série espanhola capaz de dialogar com um certo cinema de autor vindo desse país vizinho. Senão vejamos: por que me terei lembrado de alguns filmes de Jonás Trueba ao longo dos episódios de Os Anos Novos? Talvez porque as noites brancas madrilenas, as conversas sobre decisões cruciais (como ter ou não filhos), o medo do futuro a dois, os encontros e desencontros da vida respiram tão bem nesta nova produção espanhola como nas películas “de amigos” desse realizador há não muito tempo revelado no circuito da distribuição portuguesa, com Têm de Vir Vê-la e a mais recente pérola, estreada no início do ano, Volveréis – Voltareis. Podemos acrescentar o facto de o protagonista masculino de Los Años Nuevos ser Francesco Carril, um dos atores regulares de Trueba, mas isso, por si só, não justificaria a sensação de estarmos perante uma série com desejo de grande ecrã. Assim, faz todo o sentido que antes da sua estreia antecipada, esta segunda-feira no serviço de streaming TVCine+, tenha passado pela sala do São Jorge, no âmbito do Indielisboa. Poderá também ser vista a partir de 19 de maio no TVCine Edition. Para cessar aqui a comparação com o cinema de Jonás Trueba, é preciso dizer que por trás de Os Anos Novos está, afinal, Rodrigo Sorogoyen, realizador e argumentista que se deu a conhecer por cá através de As Bestas (2022), filme triunfante nos Prémios Goya (entre nove estatuetas, venceu melhor filme e realização) cujo vigor dramático, da excelência das interpretações à tensão dos planos, não se dissocia de uma sensibilidade particular para as entranhas da psicologia humana. A vida é para usar Deste cinema espanhol, alicerçado na franqueza da palavra e dos corpos, parece nascer então Os Anos Novos, por um lado, a observar o romantismo ferido de uma geração, por outro, a fazer da passagem do tempo um laboratório emocional. Isto porque, como o título sugere, os seus 10 episódios correspondem a vésperas de Ano Novo, o dia/noite em que Ana (Iria del Río) e Óscar (Francesco Carril) se conhecem e apaixonam, acabados de completar 30 anos, iniciando-se uma sucessão de vislumbres sobre o movimento da vida, a partir dessa viragem temporal. Pelo meio, há jantares de amigos, jantares de família, casas cheias, casas vazias, confusão de rostos e intimidade extrema, como se a crónica destes dois amantes transportasse uma verdade universal, só possível de contemplar naquele espaço de tempo em que se preparam as doze uvas da sorte e se imagina a face do futuro próximo. Dir-se-ia que, um pouco à semelhança de Richard Linklater (Boyhood: Momentos de uma Vida), a Sorogoyen interessou as subtilezas do envelhecimento ano a ano, neste caso, numa geração a atravessar uma década decisiva, sem que as decisões tomadas o sejam de forma a garantir a “arrumação” da vida. A magia doce e amarga da série reside, aliás, nessa capacidade de criar reflexo no espetador: não nos vemos ao espelho apenas em Ana e Óscar, mas também nas diferentes realidades dos seus pais e dos seus amigos. Como se assistir às alegrias e frustrações de cada número acrescentado ao calendário fosse a admissão de que nada se repete da mesma maneira, e uma oportunidade perdida, ou ganha, é aquilo que se cola à nossa pele, para o bem e para o mal. No fundo, reflete-se aqui sobre os inícios e reinícios, fazendo-o com um profundo respeito pela crueza do momento: o sexo, por exemplo, não se resume à atração vulcânica e sensual de dois corpos; coloca-nos antes no centro de um genuíno e bonito desconforto. O que será de Ana e Óscar? É essa a pergunta subjacente ao avanço da idade, na certeza de que a dor se apodera dos que amam, sem pré-aviso nem pergaminhos, chegando àquele ponto bergmaniano que ensaia a nudez da alma... Num dos mais belos episódios de Os Anos Novos, em que os protagonistas suportam uma (quase sempre) divertida acumulação de azares, há um casal idoso no apartamento ao lado que acaba por trazer uma sombra ternurenta e triste à juventude vibrante dos que ainda se apoiam na hesitação feliz, confundida com estabilidade. Ao assinar quatro episódios – os restantes são realizados por Sandra Romero e David Martín de los Santos –, Sorogoyen procura a condensação dos tempos dramáticos, repletos de palavreado espontâneo, cumplicidade simples e detalhes memoráveis, que tanto devem ao realismo intenso de um plano-sequência como aos breves artifícios da mente. Desde a limpidez de uma fase que “exibia os seus tesouros no rosto rebelde” de Ana, como diria Honoré de Balzac, até ao desamparo tocante de Óscar, eis a (in)felicidade natural, o retrato móvel do amor.