O último tango segundo Maria Schneider
Na onda de filmes de ficção que, melhor ou pior, têm trazido à luz do ecrã uma cultura de abuso durante muito tempo encoberta, nomeadamente dentro da indústria cinematográfica, Maria Schneider, de Jessica Palud, tinha tudo para ser um objeto de choque, ao recuperar a memória da mais conhecida cena de O Último Tango em Paris (1972) e o seu impacto na carreira e na vida da atriz, Maria Schneider (1952-2011). Porém, a realizadora francesa escolheu a dignidade da personagem em vez da exploração da controvérsia. Ou melhor, escolheu um rosto que enfrenta a câmara em diversos momentos, revelando o estilhaçado interior de uma jovem mulher cuja voz foi emudecida à época, e cujo corpo nunca mais experimentou um set de rodagem da mesma maneira. Não se trata aqui tanto de demonizar os protagonistas do ato infame, como de deixar sobressair aos olhos do espectador a atitude daquela que foi contra os padrões de silêncio, tentando, em vão, fazer o que só nos últimos anos começou a ser feito.
Maria Schneider, agora em estreia, tem essa bem-vinda sobriedade que por vezes falta aos filmes baseados em casos polémicos. E tal procedimento cauteloso vem de Palud, que além de ter trabalhado como assistente de realização de Bernardo Bertolucci em Os Sonhadores (2003), com apenas 19 anos – a mesma idade de Schneider durante as filmagens de O Último Tango em Paris –, conseguiu obter o relato descritivo de uma testemunha ocular da equipa do realizador italiano no maldito set, assim como aceder ao guião original, com as devidas anotações da altura. Uma pesquisa que se juntou ao livro de memórias da prima de Schneider (Tu t'appelais Maria Schneider), de onde se retira a linha orientadora deste retrato da atriz.
Através da delicada composição de Anamaria Vartolomei (maravilhosa intérprete de O Acontecimento), o drama biográfico divide-se praticamente ao meio para dar o “antes” e o “depois” da cena improvisada em que Marlon Brando usou manteiga e força física para simular um ato de sodomia... O “antes” corresponde então à curta fase formativa, em que Schneider entrou em contacto com o pai biológico, o ator Daniel Gélin – iniciativa que lhe valeu a expulsão de casa, por parte da mãe –, voltando-se para as lides do cinema, onde lhe chegou rapidamente a incrível oportunidade de contracenar com um dos maiores nomes do cinema americano; já o “depois”, em modo mais automático, engloba as diferentes manifestações do estrago psicológico causado por aquele momento específico.
Num certo sentido, o movimento do filme é o do preenchimento cruel: pegando na frase que Bertolucci diz a Schneider quando a conhece – “você é como uma página em branco” – Maria Schneider desenha a dor e o reflexo da atriz que, ao verbalizar o abuso de Brando e Bertolucci em nome da arte, foi redondamente ignorada. Um golpe profundo infringido aqui sem espetacularidade ou estratégias de empolamento. A Jessica Palud interessou o pulsar do semblante de Vartolomei, a sua interpelação direta e suave. E nem Matt Dillon caiu na tentação de criar um boneco Marlon Brando; é justíssima a sua simples captação de uma silhueta num drama naturalmente imperfeito.