O século de ouro das princesas cultas
Na capa do livro está uma mulher jovem, vestida de negro, resgatada a tamanha austeridade por leves apontamentos brancos na gola e no toucado. Alguns saberão que se trata de Joana de Áustria, a quem a historiografia portuguesa dedica quase sempre esta linha tão breve como contrafeita: Mãe de D. Sebastião, voltou para Espanha depois de enviuvar aos 19 anos. Mas poucos saberão o real alcance cultural e político desta princesa, que foi muito mais do que mãe de Sebastião, filha de Carlos V e irmã de Filipe II. O mesmo poderemos dizer sobre as outras mulheres, de “sangue real” ou não, de que nos fala André Canhoto Costa, no livro A Corte das Mulheres (edição Quetzal).
Tudo isto se passa no século XVI, entre os reinados de D. Manuel I e D.Sebastião, o que, grosso modo, corresponde ao período entre 1495 e 1578. Ao mesmo tempo que Lisboa se tornava porto de embarque e desembarque de tesouros, materiais e espirituais, “quase uma Nova Iorque da época”, como nos diz o autor, a corte povoa-se de mulheres escritoras e leitoras, amantes de livros em qualquer dos casos, apaixonadas pela improvisação poética, cantoras afeiçoadas a bailes e a representações teatrais e de artistas plásticas que apostam na representação de temas religiosos e profanos.
Assim surgiram mulheres que, hoje, são, na maior parte nomes de rua, de que poucos conhecem o brilho: Joana Vaz, Públia Hortênsia de Castro, Luísa Sigea, Paula Vicente, Francisca de Aragão ou Guiomar de Blaesvelt, entre outras, que gravitam em torno de princesas e rainhas tão cultas e sedentas de conhecimento como elas, mas com o poder económico e a influência política capaz de lhes providenciar o sustento. Foram os casos da já referida Joana de Áustria, que, adolescente ainda, vem casar com o seu primo, João Manuel, príncipe herdeiro de Portugal, mas também de sua sogra e tia, Catarina de Áustria, e da Infanta D. Maria, filha mais nova do Rei D. Manuel I.
Para o historiador André Canhoto Costa (autor de livros como Os Vícios dos Escritores; As Cinco Grandes Revoluções da História de Portugal ou o romance, publicado no ano passado, Como Sobreviver depois da Morte), o fascínio por este tema nasceu-lhe cedo, no contacto com um velho livro de Carolina Michaelis de Vasconcelos intitulado A Infanta Dona Maria e suas Damas: “É uma obra já antiga, do princípio do século XX, mas é um grande trabalho. Ainda na licenciatura, veio ao encontro dos meus interesses, cruzando a história cultural com a literatura do século XVI.”
Para André, a importância e o vanguardismo deste círculo de damas bem-pensantes são de tal ordem que ajudam a explicar os aspetos mais inovadores (porque não revolucionários?) da obra de Luís de Camões: “Estou certo de que ele foi muito mais do que um galanteador, como somos levados a crer pela imagem tradicional do poeta. Foi um vanguardista na expressão do amoroso feminino, que ele coloca em pé de igualdade com o masculino. Camões tem uma conceção inovadora da mulher, quer pelo papel que lhe atribui no jogo amoroso, quer pelo facto de ser o primeiro poeta europeu a dedicar poemas a mulheres que não são europeias ou brancas. Por outro lado, Camões, como estas autoras, é um homem cosmopolita, que tanto escreve em latim, como em português ou em castelhano. Sem qualquer preconceito.”
Nesta corte de damas, André destaca, desde logo, o papel mecenático da Infanta D. Maria, última filha do rei D. Manuel I, fruto do seu terceiro e breve casamento com Leonor de Áustria. Por nunca ter casado (ao que muitos dizem porque a saída do seu colossal dote teria significado um pesado rombo nas finanças do reino), patrocinou toda uma atividade de artistas e literatos, de ambos os sexos, onde o jovem Luís de Camões era presença assídua. O que leva André Canhoto Costa a estabelecer alguns paralelos com a rainha Isabel I de Inglaterra, também ela solteira, que sempre apoiou as artes, como prova o sucesso retumbante de William Shakespeare.
Mas o autor também não exclui a hipótese, frequentemente levantada, de ter existido um caso amoroso entre o poeta e a filha de D. Manuel I: “Isto apesar das diferenças entre os meios sociais, já que ela era filha e irmã de reis e Camões era, quanto muito, um membro da pequena nobreza, talvez um escudeiro. Este obstáculo é o argumento frequentemente oposto pela historiografia à possibilidade de tal ligação, mas não podemos perder de vista o fator humano e individual, que é sempre imprevisível.”
Como o autor nos recorda, este tema dos supostos amores reais de Camões volta, de vez em quando, à luz do dia: “No século XX até houve um duelo entre um estudioso de Coimbra, José Maria Rodrigues, que queria provar a veracidade desses amores, e um homem muito conservador, Alfredo Pimenta, que defendia justamente o contrário.”
O que hoje sabemos é que “nesta época, a convivência entre homens e mulheres na corte portuguesa era mais aberta do que nos séculos XVII e XVIII. Com a instalação do Tribunal da Inquisição e a contrarreforma católica, a repressão sobre as mulheres, na corte ou fora dela, aumentou muito. Houve um fechamento, a meu ver como resposta da Igreja de Roma a uma progressiva laicização da própria Cultura. Depois da contrarreforma, a Igreja voltou a exercer o monopólio de saber literário e científico, pelo menos, nos países do Sul da Europa.”
Mas o círculo erudito da Infanta fez escola na corte de Lisboa. Tão cultas e dinâmicas no estímulo e no patrocínio foram duas princesas espanholas que vieram casar a Portugal: Catarina de Áustria, filha de Joana, dita a Louca, e Filipe, o Belo, casada com D. João III, e, mais tarde, também a sua sobrinha e nora, Joana de Áustria, filha de Isabel de Portugal e Carlos V, que casaria com o príncipe D. João Manuel. “Pelos trabalhos de investigadores como Ana Isabel Buescu, sabemos hoje que a Rainha Catarina era uma mulher cultíssima, sempre muito bem informada do que se passava em termos culturais por essa Europa fora. Foi uma grande colecionadora de arte e uma bibliófila, mas a imagem que a historiografia portuguesa guarda dela é muito redutora: Mostra-a como alguém que estaria focado na defesa dos interesses espanhóis na corte portuguesa.”
Joana não sucedeu a Catarina no trono de Portugal porque a morte muito precoce do marido o impediu, mas teve tempo de brilhar pelos seus dotes artísticos e intelectuais: “Era uma exímia interprete de guitarra renascentista, que se interessava muito por literatura, nem sempre a mais aconselhada pela Igreja, refira-se. Também gostava muito de jogar às cartas, um hábito que era muito comum nas cortes europeias de então.”
Mas nem todas as protagonistas deste livro são cabeças coroadas. André Canhoto Costa destaca várias figuras de grande valia, como Luísa Sigea: “Será uma mulher com grande fama europeia, não apenas no seu tempo, muito citada por intelectuais de várias proveniências até ao século XIX.” Depois disso, explica ainda o historiador, cairá no esquecimento reservado aos autores que se expressaram sobretudo em latim, língua de cultura que foi saindo dos currículos escolares ao longo do século XX. Mas também nos fala de mulheres como Joana Vaz ou Francisca de Aragão, dama próxima da Infanta Dona Maria, a quem alguns também atribuem amores com Camões.
Este esplendor perdeu-se com aquilo a que podemos chamar o revanchismo pós-concilio de Trento da Igreja Católica: “A tragédia do D. Sebastião - afirma o autor - é também explicada pelo ambiente de grande conservadorismo e misoginia promovido pela sua educação, a cargo dos jesuítas, que, nesta época, têm a ambição de controlar as consciências das pessoas reais. O jovem rei de Portugal será educado com uma mensagem misógina, contra a liberdade amorosa, e com a apologia sistemática da guerra, que, no caso dele, se transformará numa obsessão.”
Para trás, no tempo, tinha ficado o brilho dos serões galantes, animados pela música e pela poesia, e das tardes em que as damas da corte davam rédea solta ao pensamento. No Rossio, crepitavam agora as fogueiras da Inquisição, enquanto em Alcácer-Quibir pereciam os sonhos de grandeza do jovem rei.