Maria Helena Ventura
Maria Helena VenturaPaulo Spranger

Maria Helena Ventura: De Inês a Camões, os amores malditos da História de Portugal

Amores maiores do que a vida ou degredos ditados pelas conveniências dinásticas são alguns dos temas da História que inspiram a romancista. Como demonstra o seu novo livro, 'Acorda Inês'.
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Pedra de sonho e dor, foste lavrada/Pela saudade imensa aqui vivida”, escreveu Afonso Lopes Vieira (no poema Os Túmulos) sobre o monumento, único no mundo, em que jazem, no Mosteiro de Alcobaça, o rei D.Pedro I e Inês de Castro. A partir desse mesmo lugar, a escritora Maria Helena Ventura desenvolveu o seu romance Acorda Inês - A Rosácea (edição Saída de Emergência), embora vá salientando que este não é apenas mais um título a juntar à vastíssima bibliografia nacional e internacional produzida, pelo menos, desde o século XVI.

O mesmo se poderá dizer sobre outro romance histórico seu, agora reeditado, em época de comemorações camonianas, pela mesma chancela, A Musa de Camões. Ancorada num cuidadoso trabalho de investigação, Maria Helena não hesita em questionar alguns dos mitos históricos mais acarinhados pelos portugueses, nomeadamente os que se relacionam com as figuras tratadas nestes dois livros. Nem em pô-las a falar como gente de carne, filhos da época e do contexto em que viveram, sem cuidar de ferir, mais do que suscetibilidades, ideias feitas ao longo de séculos. Maria Helena Ventura é autora de uma vasta obra, em que se incluem, além dos títulos referidos, Minha irmã Luísa Todi; Afonso, o Conquistador; ou Conheces Sancho?

Como é que a Maria Helena se interessou pelos amores de Pedro e Inês?

Começou com um desafio do editor para que eu tratasse a figura do rei D. Afonso IV, pai de D.Pedro. Como pode imaginar, esta não era uma figura histórica com quem eu simpatizasse. Mas, assim desafiada, comecei a fazer alguma investigação e deparei-me logo com o Alexandre Herculano a dizer que o D. Dinis tinha sido um monarca avaro, que, também por causa disso mesmo, deixara uma fortuna aos herdeiros, que Afonso IV fora um rei muito sério e que D.Pedro era um louco com intervalos de lucidez. Sobre este, eu já tinha muita vontade de escrever, mas já há tanta coisa sobre os amores de Pedro e Inês… É o tema da História de Portugal mais abordado, pelo menos desde o século XVI, quando começou a ser tratado, cá e no estrangeiro.

E, por isso, como autora, sentia alguma resistência?

Posso dizer que sim. Mas a verdade é que há mitos que precisam de ser desconstruídos, mesmo aqueles que são contrariados por verdades históricas que nos entram pelos olhos dentro. Sou natural de Coimbra e estou consciente que tocar em mitos como os da Inês ou da Rainha Santa é muito complicado. Comecei a encontrar coisas fantásticas, como o quadro psiquiátrico do D. Pedro, que sofria de vários problemas como epilepsia, para a qual, como imagina, não havia diagnóstico no século XIV. Perante isto, telefonei ao editor e propus-lhe fazer então um romance sobre Pedro e Inês, mas que desconstruísse muito do que tem sido dito e repetido ao longo dos séculos.

Como, por exemplo?

A morte da Inês não foi ordenada num momento de raiva de Afonso IV. Houve todo um julgamento em Montemor-o-Velho, em que foram ouvidos vários conselheiros, e na sequência disso, ela foi executada, e não apunhalada, como habitualmente se conta. O António Ferreira, na peça A Castro, consegue mostrar que o rei chega a apiedar-se dela, como, aliás, também o sugere o próprio Camões, mas a família dela era muito poderosa na Galiza e isso criava muitos anticorpos na corte portuguesa. Não deixa de ser curioso que seja a literatura a colocar alguma razoabilidade no tratamento dos factos. Aliás, também é a literatura que diz que Pedro não quis casar com Inês, que é uma coisa em que as pessoas não queriam acreditar.

Em seu entender, porquê?

Havia outras questões, como a provável bissexualidade de D. Pedro. Em determinado momento, sendo o príncipe já viúvo de Dona Constança, é o próprio D.Afonso IV a dizer-lhe que, se não queria aceitar mulher que ele, ou a Coroa, lhe escolhesse, então que casasse com Inês, com quem já tinha três filhos (aliás, quatro, um morreu em criança). Mas isso não aconteceu. Depois da morte dela, e já rei, D.Pedro procurou forjar um casamento para que os filhos fossem legitimados, mas o Papa não acreditou. A cerimónia da trasladação do corpo dela, de campa rasa em Coimbra para Alcobaça, foi algo de muito impressionante, com uma grande homenagem do povo a Inês. Essa cerimónia procurava demover o Papa do seu intento, mas em vão. Agora também temos de esclarecer as pessoas que a cerimónia de beija mão ao cadáver nunca aconteceu, não era possível, já se tinham passado perto de seis anos, com Inês em campa rasa.

Pelo que li é uma invenção do teatro espanhol do século XVII, que pegou no tema.

Sim, e que fez eco no imaginário coletivo. Agora temos de reconhecer que o D.Pedro foi um bom pai. A filha dele com Inês teve um papel muito importante na governação do Palácio. Filha que, aliás, teve um caso de incesto com o meio-irmão, D.Fernando, como sugere o Fernão Lopes, de forma muito expressiva.

Uma ideia que certamente não aparece na historiografia ou na literatura tradicional sobre o tema…

Claro que não. Mas é sugerido por vários historiadores. Talvez não se considerassem irmãos.

Mas a descendência do casal é muito trágica. Há o caso do filho, que casa com a irmã de Leonor Teles, Maria Teles, e depois a assassina.

A Leonor Teles era uma intriguista, como diz o Fernão Lopes, e contribui para o assassinato da irmã às mãos de D. João. O seu irmão mais novo, Dinis, quando o D.Fernando lhe ordena que beije a mão de Leonor Teles como Rainha, ele recusa. E diz: “Ela é que deveria beijar a minha”. Obviamente que, depois desse gesto, ele vai ter de fugir, porque ela era muito vingativa.

Falemos agora do romance A Musa de Camões, agora reeditado. Eu diria que a grande figura deste livro é a Infanta Dona Maria, última filha de D. Manuel I, cujo destino foi truncado pela determinação de D. João III em não a deixar sair do reino…

Porque ela era de tal maneira rica que teria deixado a Coroa na penúria se saísse do reino para casar com um príncipe estrangeiro, como seria de prever. Ela deu a volta como pôde, rodeando-se de pessoas muito cultas e criando um cenáculo literário muito importante.

Pode-se dizer que é uma mulher do Renascimento?

Sim e uma figura de grande relevo. Correspondia-se com imensa gente importante na Europa. Devo-lhe dizer que eu tinha vontade de escrever este romance desde a adolescência, quando frequentei a Escola Infanta Dona Maria. Para isso fui reunindo muito material, entre os quais um trabalho de José Maria Rodrigues, que defendia a tese de que Camões se tinha apaixonado por ela. Não me admirava. Como hoje sabemos, ele não punha muitos limites à sua imaginação amorosa. E ela retribui, talvez seduzida pelo lado intelectual. Eu acredito que Camões tenha sido obrigado a partir por causa desses amores, até porque, no final do livro, há uma grande surpresa. A isso juntavam-se, como é do domínio público, as invejas e intrigas que sobre ele recaíam no seio da própria corte.

Um dos aspetos que trabalha muito é a linguagem das personagens. Ao contrário do que fazem outros autores deste género literário, a Maria Helena procura adequar a oralidade à época e ao meio social em que se passam os acontecimentos.

Foi outro desafio para mim. Em alguns casos, pu-los mesmo a falar com palavrões, ou, pelo menos, de forma grosseira. Arrisco a que as pessoas fiquem chocadas, mas tem de ser, por uma questão de coerência. O D.Pedro I era um homem excessivo, frequentemente cruel. A sua oralidade tem de estar relacionada com essa forma de ser.

Maria Helena Ventura
"Senti afinidade com Paula Rego na aproximação ao universo da arte como campo de batalha"

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