"Senti afinidade com Paula Rego na aproximação ao universo da arte como campo de batalha"
Na primeira das 13 salas em que se multiplica a exposição Entre os vossos dentes, no Centro de Arte Moderna (CAM) da Gulbenkian, estão três obras: a pintura de coleção privada e pouco conhecida de Paula Rego A primeira missa no Brasil (de 1993), e as obras Mapa de Lopo Homem (1992) e Filho Bastardo II (1997) de Adriana Varejão, que abordam a violência colonial. Está dado o mote para esta mostra que reúne cerca de 80 obras da artista portuguesa, já falecida, e da pintora brasileira. A exposição tem a curadoria da própria Adriana Varejão, de Helena de Freitas e de Victor Gorgulho e o título Entre os vossos dentes foi tirado de um poema da poetisa e romancista brasileira Hilda Hilst, de 1974, numa alusão à ditadura no país.
A cenografia da mostra é de Daniela Thomas e a divisão em vários núcleos - alguns com frestas que os ligam uns aos outros - abre caminho a “salas com uma escala mais doméstica, que convida à intimidade”, diz Adriana Varejão. A artista sublinha também que entre as obras “existem bastantes coincidências, mas são coincidências muito trabalhadas pela curadoria”.
A relação entre a pintura de Adriana Varejão e a de Paula Rego estabelece-se a diferentes níveis, além dos temas de fundo relacionados com o corpo da mulher, o patriarcado, o colonialismo e formas de opressão. Por exemplo, numa das salas a “coincidência” é cromática. Em Língua com padrão em X (1998) de Adriana Varejão o azulejo português é rasgado revelando o que parece carne viva. Na parede oposta o conjunto de quadros Possessão I-VII (2004), de Paula Rego, representa uma mulher em diferentes posições num divã remetendo para uma altura em que na medicina se falava de “histeria” feminina. A geometria e a cor do divã e das vestes da mulher representada estabelecem a ponte com as peças de Adriana Varejão. Aqui está também visível uma das diferenças entre as duas artistas, sublinhada pela curadora Helena de Freitas: a pintura de Paula Rego é mais representativa, e a de Adriana Varejão mais material.
Em entrevista ao DN durante a visita de imprensa à exposição - aberta ao público desde ontem e até 22 de setembro -, Adriana Varejão diz que o Brasil está mais adiantado do que Portugal na discussão de temas como a questão colonial e o racismo.
Expôs com a Paula Rego no Rio de Janeiro, ainda ela era viva, em 2017. Como é que aconteceu esse encontro?
Foi uma ideia da Márcia Fortes, minha o galerista de então, da Galeria Fortes D’Aloia & Gabriel . Ela tem uma galeria no Rio em que faz encontros de artistas, de diferentes gerações, que tenham afinidades. E ela propôs-me o encontro, uma exposição com a Paula Rego. Quando eu vi a exposição da Paula na Pinacoteca de São Paulo - era uma retrospetiva muito grande da Paula lá e eu nunca tinha realmente olhado para a obra da Paula com tanta atenção - eu disse à Márcia Fortes: estou chocada com essa exposição, fiquei chocada com a obra da Paula, não esperava isso. Foi o primeiro momento em que a obra dela me impactou bastante. Fui ao ateliê dela para fazermos a exposição no Rio, em 2017.
E que aspetos da obra dela mais a marcaram na altura?
Eu achei que a obra era contundente, que tinha uma componente de narrativa em relação ao universo feminino que era muito importante. Porque tinha um componente grotesco, forte, violento. As narrativas também, elas surpreendiam, eram subversivas.
Impactou de alguma forma o seu próprio trabalho?
Não, no meu trabalho não houve impacto direto. Eu senti muita afinidade. No sentido dessa fúria, na aproximação ao universo da arte como um campo de batalha. Um universo que não é uma coisa ligada ao conforto e à beleza. É ligado a uma ideia de desconforto mesmo.
Afinidade nas questões que levantam, nos problemas para os quais chamam a atenção?
Para questões contundentes. Eu senti isso, senti que tinha essa afinidade com ela.
Como é que surgiu a ideia de fazer esta exposição Entre os vossos dentes?
Em 2021, a Maria Ana Pimenta propôs esta exposição. Quando planeámos fazer a exposição, a Paula ainda estava viva (ela veio a falecer em 2022). Ela passou a trabalhar na mesma galeria que me representava, a Victoria Miro, mudou de galeria. Era a galeria com quem eu já trabalhava há 20 anos. E o Nick Willing [o filho de Paula Rego] teve também um papel fundamental. Ele esteve no Rio de Janeiro aquando da abertura da nossa exposição em 2017.
Fez obras especificamente para esta exposição?
Fiz uma obra só. Chama-se Renda Renascença. É uma obra que está numa sala chamada Dentro do Quarto Fora de Mim. A Paula tem três retratos de mulheres. Uma mulher vestida de noiva, com uma cara extremamente desconfortável. Em pé, ao lado, tem outra mulher. Você sente que a roupa está um pouco incómoda. E tem uma outra que é uma mulher-cão. Ela tem os dedos crivados no chão e a boca dela rosna. Então eu fiz um trabalho com a renda renascença, que é uma renda tipicamente brasileira, mais trazida da Europa, é uma atividade artesanal, ligada às mulheres também, porque quem são as rendeiras? São as mulheres, e essa renda está pintada sobre uma superfície craquelada, como se fosse sobre um abalo sísmico. Quase que a trama da renda tenta fazer uma sutura nesse desconforto e nessa quebra da superfície. Então foi esse o trabalho que fiz para a exposição, dialogando com o que eu achava que era o universo psicológico dessas mulheres. De que existia alguma coisa dentro, contida, que se queria expressar. Existia um certo desconforto.
A temática colonial é do início do seu percurso artístico. Atualmente, que temas lhe interessam explorar?
Esse tema parece-me super importante. Vários temas desta exposição são importantes. Primeiro, as narrativas ‘decoloniais’. Tem-se falado muito nisso no Brasil. Que são questionamentos de narrativas hegemónicas de poder. A questão de género... Há muitos trabalhos aqui, narrativas ‘decoloniais’, que pertencem às minhas obras dos anos 1990. Começou-se a falar disso mais recentemente. Mas acho que um dos méritos do meu trabalho, reconhecidamente, é que, nas artes plásticas, eu estava a falar sobre isso em 1992, 1994. Agora não preciso de assumir essa narrativa, porque tem agentes dessas narrativas que falam por si mesmo. Mas, naquela altura, era importante uma pessoa que tinha poder falar. Eu, como mulher branca privilegiada, tinha o poder de falar determinadas coisas. E, hoje em dia, acho que me devo retirar de cena e colocar outras pessoas nessa posição de poder. É importante retirar-me e deixar que outras pessoas falem.
Em que é que está a trabalhar agora?
O meu trabalho está a ir para um lugar mais... Na semana passada inaugurei uma exposição na Hispanic Society, em Nova Iorque, que fala sobre o bioma amazónico. É um trabalho que toca um pouco na questão das outras espécies, na aproximação às outras espécies, na questão da ecologia e também na cerâmica, que é uma paixão que eu tenho. Cerâmicas chinesas, otomanas, mexicanas... Há uma sala aqui na exposição super interessante sobre metamorfoses, que fala da relação entre espécies. São corpos ambíguos entre várias espécies, espécie humana e espécies animais. Pensarmos que o ser humano não é o dono do planeta. Esse olhar em relação às outras espécies é importante.
O que a atrai na cerâmica?
Essa questão da arte decorativa, que sempre foi relegada para um plano mais inferior em relação às fine arts. Eu gosto também do próprio barroco. Ele lida com as questões da arte decorativa, o barroco das igrejas e tal. É uma questão que sempre acompanhou o meu trabalho e tem ficado muito forte.
Que materiais tem no seu ateliê nesta altura?
Estou a fazer uma exposição para Atenas. Eu não lido com a cerâmica, mas com a história da cerâmica, em pintura. O meu denominador é sempre a pintura. Estou a criar uma exposição em que há histórias moldadas que são inspiradas na história da cerâmica. São pinturas com essa superfície craquelada, porque essa superfície remete muito para...Elas têm um corpo que parece cerâmica. Tanto que eu fiz as séries dos azulejões em grande formato, eles são craquelados, fazem alusão a esse corpo que parece da cerâmica. Muita gente, até ceramistas, acham que é cerâmica mesmo. É por isso que me interessei também pela obra do Bordalo [o ceramista português Rafael Bordalo Pinheiro].
E os azulejos portugueses, e não só, também marcam presença na sua obra.
O primeiro trabalho que eu fiz sobre azulejaria, citando azulejaria, foi em 1988. Foram de azulejos portugueses, a azulejaria que temos no Brasil, no barroco, é portuguesa. Não se fazia azulejo no Brasil, era tudo comprado de Portugal. Aliás, não se podia fabricar nada no Brasil. O Brasil era um entreposto de venda para os portugueses. Não é como no México, onde existe uma produção local. Então o meu primeiro trabalho remete para a azulejaria portuguesa. E depois expandiu-se para outras azulejarias. Agora comecei uma série sobre a azulejaria do modernismo. Ligada aos anos 50, 60 do modernismo no Brasil, quando se produziu uma azulejaria super interessante, com Athos Bulcão [pintor e escultor brasileiro]. Uma espécie que não é muito catalogada.
O que representa Portugal para si?
Essa pergunta é fácil de ser feita e difícil de ser respondida. Bom, tenho uma coisa pessoal, eu venho a Portugal desde os anos 90. Tenho muitos amigos portugueses, tenho uma afinidade muito grande. Quando chego a Portugal parece que estou a chegar à casa da minha avó, há uma familiaridade muito grande. Agora, eu sinto que certas questões discutidas no Brasil, muito adiantadas, ainda não estão a ser tão discutidas aqui.
Que tipo de questões?
A questão ‘decolonial’, por exemplo. A questão da revisão histórica. O Brasil está com esse diálogo muito em voga, é muito potente. Não sinto isso dessa maneira em Portugal. Esta exposição propõe isso. Pensar na dívida histórica que os países têm com determinados países, a questão da imigração aqui, eu acho que é importante avaliar isso, assim como a questão do racismo. No Brasil existia um discurso, o de que nós somos uma democracia racial, ninguém falava em racismo no Brasil. Era um racismo velado, ninguém assumia. E hoje em dia se fala-se muito sobre isso. O Brasil é um país racista, é. Eu sou racista, porque venho de um sistema que beneficiou dele, sou branca, privilegiada. Eu beneficio desse sistema.
Considera que Portugal está a passar ao lado dessa discussão?
Quando chego a Portugal não ouço as pessoas a falar sobre isto. Aqui não há racismo. Eu ouço pessoas a dizer que a colonização portuguesa não foi tão ruim. A espanhola foi muito pior. Como se pudesse medir níveis de violência. É uma discussão que é preciso ter aqui em Portugal. É importante tê-la. A minha proposta não é uma espécie de revanchismo, nada disso. Eu sinto-me parte dessa história, mas é importante nós, como parte dessa história, termos consciência e fazermos a revisão. Ter responsabilidade sobre isso e assumir posições e políticas que possam vir a reparar minimamente o que isso provocou.