A propósito da fase final da sua obra, nomeadamente Os Três Desastres (2012) e Adeus à Linguagem (2014), Jean-Luc Godard gostava de evocar a referência de Sarajevo como o lugar - e também a ideia - em que a nossa Europa, sucessivamente, se tinha encontrado e perdido. No trabalho de Pedro Pinho, cineasta português de outra geração (nasceu em Lisboa, em 1977), podemos encontrar uma mesma fixação na Europa, ainda que o seu ponto de fuga seja a África. Assim acontece na sua realização O Riso e a Faca, filme revelado no último Festival de Cannes, tendo valido um prémio de interpretação a Cléo Diára (secção Un Certain Regard).Há algo de perverso na inscrição da Europa numa história que, afinal, se centra na personagem de um engenheiro ambiental, Sérgio (Sérgio Coragem), que, como diz a sinopse oficial, “viaja para uma metrópole da África Ocidental” (surgirão, ao longo do filme, diversas referências à Guiné-Bissau) - desloca-se para trabalhar com uma ONG na “construção de uma estrada entre o deserto e a selva”. Politicamente perverso, entenda-se, já que o progressivo envolvimento de Sérgio com Diara (Cléo Diára) e Gui (Jonathan Guilherme) leva-o a questionar o seu trabalho ou, pelo menos, a sentir-se confundido pelas razões que, oficialmente, justificam a sua presença naquele cenário. .Como o próprio Pedro Pinho referiu numa entrevista dada durante o Festival de Cannes ao magazine The Upcoming (YouTube), tratava-se de ter em conta a Europa, não exatamente como uma “instituição política”, antes a Europa “como uma ideia”. Daí o misto de desencanto e amargura com que O Riso e a Faca, “duplicando” a visão de Sérgio, vai encontrando (ou perdendo) essa ideia que surge, agora, enredada nos atos de uma política de cariz protecionista e humanitário que, em última instância, parece paralisada na incapacidade de conhecer a própria realidade que deseja transformar.O filme quer lidar de frente, sem subterfúgios factuais ou moralistas, com o impasse de Sérgio, porventura refletindo o rendilhado de hipóteses conceptuais e dramatúrgicas que terão acompanhado a gestação do próprio projeto (que esteve interrompido pela epidemia de covid). Daí talvez a sua duração invulgar (três horas e meia), não parecendo evidente que tal duração ajude a reforçar a consistência dramática, ou até a pertinência narrativa, de todas as cenas que nos são apresentadas. Em qualquer caso, a dúvida metódica sobre tal duração não quer favorecer a ideia simplista segundo a qual o “longo” é necessariamente redundante, até porque O Riso e a Faca existe também numa versão ainda mais longa (cinco horas e meia), recentemente apresentada no Doclisboa.Numa espécie de ponto de fuga emocional da odisseia de Sérgio, serão as cenas de sexo a inscrever na sua aventura africana uma verdade visceral em que se cruzam prazer, angústia e desenraizamento. Nos seus momentos mais intensos, e também mais belos, O Riso e a Faca acaba por ser um filme sobre a solidão irreparável de Sérgio.Um gosto musicalMesmo não conhecendo a origem do título O Riso e a Faca, poderemos dizer que a sua estranheza apela a uma certa musicalidade simbólica. Assim é, sem dúvida, já que se trata do título de uma canção do brasileiro Tom Zé, incluída no seu álbum Todos os Olhos (1973), canção que surgirá no filme numa cena de especial comunhão afetiva (“Quero ser o riso e o dente / Quero ser o dente e a faca / Quero ser a faca e o corte / Em um só beijo vermelho”).Importa, por isso, recordar que na sua primeira longa-metragem de ficção, A Fábrica de Nada (2017), Pedro Pinho já experimentara as canções como elementos orgânicos da narrativa - nesse caso, aproximando-se mesmo de um conceito, também ele perverso, de “filme musical”. Ou como o cinema que quer ser político não precisa de se encerrar nas linguagens da política. .'Bugonia'. Redescobrindo o prazer da fábula .'Stiller & Meara: Nada Está Perdido'. Como fazer humor em seis minutos.'Alpha'. Entre epidemias e assombramentos