O manto branco que cobre as montanhas da Anatólia está longe da vista quando o filme começa, dentro de um balneário estreito e pouco iluminado onde dezenas de miúdos, em grupos de três por cubículo, tomam o seu banho semanal. Esta é a entrada abrupta, sem legendas adicionais, no ambiente de um internato cujo ensino se destina a estudantes curdos, com o pessoal docente, turco, orientado para disciplinar os rapazes em função de uma cultura do medo. O primeiro indício dessa prática acontece ainda dentro do balneário, na sequência de uma briga inofensiva que resulta num castigo desproporcional: três miúdos que se lavavam num dos cubículos são obrigados a tomar o resto do banho com água fria, como se fosse possível ignorar as temperaturas negativas (-35°C) lá fora. Um desses meninos, Memo, de estrutura franzina, está o tempo todo debaixo do olhar silencioso de outro, Yusuf, que no caminho de volta para o dormitório tira a sua própria toalha dos ombros e coloca-a sobre as costas do amigo enregelado. Um gesto único que rasga brevemente a aspereza da atmosfera opressiva..Quando Neva na Anatólia é a segunda longa-metragem de Ferit Karahan, realizador nascido na Turquia que aqui versa em imagens sobre a experiência pessoal de ter sido aluno num destes colégios internos nos anos 1990 (de lá para cá, ele certificou-se de que não mudou muita coisa). O filme venceu o prémio FIPRESCI na secção Panorama do Festival de Berlim 2021, integrou a competição oficial do LEFFEST, com uma menção especial do júri para melhor interpretação (Samet Yildiz, o pequeno Yusuf), e é um daqueles objetos recatados e valiosos que correm o risco de passar despercebidos no meio da abundância de estreias semanais..Guardemos em mente a referida cena de abertura. Quando Neva na Anatólia prossegue com uma segurança admirável a sua radiografia institucional, sem recorrer a qualquer afetação dramática, como seja o uso de banda sonora; basta-lhe o ruído natural da esfera escolar. A câmara ao ombro, por sua vez, mantém a lente próxima de Yusuf e Memo, este último que na manhã seguinte ao banho, com a cara muito pálida, se queixa de dores de cabeça, levando o colega Yusuf numa discreta odisseia entre corredores, gabinetes e salas de aula a tentar chamar a atenção dos adultos, enquanto vê o estado do amigo deteriorar-se a ponto de deixar de responder ao mínimo estímulo. Pouco a pouco, alguns professores e elementos do staff vão chegando perto do leito do doente, numa enfermaria mísera e inutilizada, apenas para verificar que ele não tem febre - dizem-no com o alívio idiota de quem acha que "se calhar não é assim tão grave". Mas à medida que o tempo passa e a batata quente da responsabilidade vai sendo atirada de mão em mão, os olhos grandes e pestanudos de Yusuf dão sinais mais intensos do seu desespero controlado, e esse não deixa nenhum espetador indiferente..Apenas recorrendo a uma situação de emergência, para a qual qualquer escola deveria estar preparada, Karahan abre uma fenda que permite expor o funcionamento putrefacto de uma instituição com métodos arcaicos. Espécie de revelação fotográfica que remete para o ADN da sociedade turca. Não o faz, porém, com o tipo de leitura a preto e branco da realidade que põe as personagens em caixinhas de bons e de maus. Na verdade, o filme reflete sem ganga retórica sobre a forma como um determinado sistema autoritário adormece a consciência das pessoas neles implicadas. E é no âmbito do ensino - em particular, num colégio isolado nas montanhas - que esse sistema se manifesta numa lógica mais efetiva (e mais violenta), porque aquelas crianças, que vivem assombradas pela culpa e castigo, estão destinadas a tornar-se naqueles adultos frustrados..Nada disto se apresenta em abstrato, mesmo que possa transparecer um cariz universal. Karahan está de facto a pôr o dedo no sofrimento da minoria curda na Turquia, evidenciando a repressão da língua e o modo como é incutida a ideia aos alunos de que estão numa conjuntura privilegiada. Aqui constrói-se uma narrativa ampla quase somente a partir do rosto de um não ator, Samet Yildiz, que nos lembra a grandeza dos pequenos heróis de Abbas Kiarostami, como o de Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, sobre um miúdo que faz de tudo para devolver um caderno perdido, de maneira a evitar a punição do colega. Quando Neva na Anatólia tem essa força dos olhos da criança mas também o humor negro kafkiano de A Morte do Sr. Lazarescu, do romeno Cristi Puiu, navegando numa burocracia humana que pode ser fatal..É simplesmente impressionante a destreza da condução desta personagem, Yusuf, qual Oliver Twist taciturno, que resiste à frieza do circuito interno, à inércia dos responsáveis, ao mesmo tempo que procura manter-se invisível; eis a contradição que encerra a própria complexidade do final. Acompanhar Yusuf corresponde a sentir a tensão de um thriller sem fanfarra, que vai revelando o absoluto desamparo de toda a gente naquele ermo branco. A neve cai, gentil e inexorável, enquanto o drama fecha um ciclo em jeito de pancada seca. Quando Neva na Anatólia é uma peça de cinema estupendamente justa.