O mergulho de Jia Zhang-Ke 

O mais celebrado cineasta chinês do momento regressa com ...Até Tocar o Azul do Céu, mais uma obra sobre a passagem do tempo num país em mutação constante.

Ser cronista em cinema não é fácil, mais difícil ainda ser cronista de um país em mutação constante como a China. Em ...até Tocar o Azul do Mar, Jia Zhang-Ke volta ao documentário puro e duro sem deixar de "fazer crónica" em cinema, neste caso para compor uma sinfonia de memórias da sua área na China, Shanxi. Só que o registo de observação é acalentado por algo que poucos esperavam: uma abertura escancarada a um registo mais emocional. Como se as histórias que se contam dessa região nos últimos setenta anos fossem um espelho da mudança económica e social de um país que foi da Revolução Cultural de Mao para uma euforia empresarial que começou nos anos 1970.

O relato deste povo de Shanxi é feito através de entrevistas nada preguiçosas de uma série de escritores oriundos dessa área. Entrevistas que desvendam histórias e relatos de familiares e de uma ordem social que mudou aquela paisagem e de como a literatura pôde ter um papel de escultora desse tempo. Sem imagens de arquivo nem truques de recriação de período, Jia acredita no poder dos rostos e na implacável fidelidade das paisagens em transformação. Acredita também no poder de transporte daqueles testemunhos de um tempo em que a mentalidade chinesa vivia de um espírito de resistência coletiva.

Para lá dos méritos pedagógicos de um objeto como este, estamos perante mais um exemplo de como Jia consegue ser ainda historiador ao serviço do cinema, não só por mostrar o interior do espírito de um povo, mas sobretudo por abordar a História recente da China como exercício de memória coletiva. Tudo isto feito com um enorme respeito pelos tempos emocionais destes escritores nas suas confissões do passado. Um respeito quase afetivo e isso torna-se sempre absorvente. Mais ainda quando o realizador não se limita a deixar estáticas as suas câmaras no momento das entrevistas. Literalmente, há um investimento de alma nesta recolha, sublinhado com um dramatismo convincente através da escolha da música.

dnot@dn.pt

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG