Estreado no Festival de San Sebastián de 2024, o mais recente filme de Costa-Gavras, O Último Suspiro (a partir de hoje nas salas portuguesas), envolve um desafio temático com que não é simples lidar. A saber: a sua personagem central, Fabrice Toussaint (Denis Podalydès), é um escritor e filósofo que, na sequência de uma ressonância magnética, fica a saber que tem um cancro... Não lhe é fácil, por isso, dialogar com o seu médico, Augustin Masset (Kad Merad). E tanto mais quanto, numa linguagem sincera e transparente, Augustin lhe faz ver que será preciso refletir serenamente e tomar decisões concisas sobre os modos de lidar com a doença.Evitemos, por isso, alimentar o mais pobre imaginário televisivo que, todos os dias, fere a nossa sensibilidade e tenta limitar a nossa capacidade de pensar. Não se trata de alimentar esse misto de paternalismo piedoso e cinismo mediático com que alguns responsáveis de talk shows se permitem explorar muitas formas de sofrimento humano (o mesmo se dirá da pornografia moral de certas rubricas sobre o “mundo do crime”). O filme de Costa-Gavras não é sobre o “cancro” como uma entidade abstrata, suscetível de ser reduzida a uma antologia maniqueísta de prós e contras. E também não pretende retratar “todas” as pessoas atingidas por alguma forma de cancro, como se fosse psicologicamente pertinente e filosoficamente inteligente alimentar a ilusão de que há respostas globais para um tão complexo fenómeno biológico e social.Falar sobre o cancroFalemos, por isso, de cinema. Como? Começando por parafrasear a forma como Gertrude Stein eternizou a transparência e o mistério de uma rosa, agora dizendo: um filme é um filme é um filme... Três vezes para estarmos seguros de não ceder a essa maldição cultural que faz com que os filmes (os livros, as canções, etc.) estejam a ser reduzidos à importância que se atribui aos seus “temas”, desse modo promovendo de forma despudorada as mais vergonhosas mediocridades artísticas. . Estamos perante uma narrativa sobre a passagem para o universo da palavra - da fascinante pluralidade das palavras. Costa-Gavras, também autor do argumento (a partir de um livro de Régis Debray e Claude Grange), escolhe como motor dramático o próprio diálogo Fabrice/Augustin. Com uma nuance a que não falta uma contagiante componente irónica: perante o medo e as dúvidas de Fabrice, Augustin sugere-lhe que ele o acompanhe nas visitas a outros pacientes com cancro.O mínimo que se pode dizer dessa experiência é que, para lá da diversidade de manifestações cancerígenas que podem afetar um ser humano, os modos como cada paciente lida com a sua própria situação são infinitos - por vezes, é verdade, fascinantes. Assim acontece com a bem disposta Madame Léonie (Françoise Lebrun, lendária atriz de A Mãe e a Puta, o filme de 1973 realizado por Jean Eustache), ou ainda com Estrella (Ángela Molina), a paciente que dispensa um psicólogo, já que a sua crença lhe garante que o seu psicólogo “está lá em cima” - aliás, com o seu olhar, Fabrice tenta confirmar essa divina localização... .Costa-Gavras tem também na sua filmografia alguns célebres dramas políticos como Z – A Orgia do Poder (1969) ou A Confissão (1970). O Último Suspiro não é, por isso, um filme sobre a “boa maneira” de morrer com cancro. Não é sequer um filme em que a morte seja um ponto de fuga que mobilize todas as linhas dramáticas que o seu argumento coloca em jogo. Em boa verdade, é um filme sobre a “boa maneira” de viver, mesmo enfrentando o cancro . E tanto mais quanto Costa-Gavras nos convoca para um depurado registo realista em que a pertença de cada personagem a uma determinada matriz (profissional, institucional, etc.) não apaga, antes permite sublinhar, a sua irredutibilidade humana.A dimensão políticaPara quem conheça um pouco da filmografia de Costa-Gavras (francês, nascido na Grécia em 1933), o envolvente realismo de O Último Suspiro não será uma surpresa, mas não há dúvida que se demarca das ambiências dos seus filmes mais conhecidos. Penso, em particular, nos dramas políticos que o projetaram a nível internacional: Z - A Orgia do Poder (1969), A Confissão (1970) e Estado de Sítio (1972), todos protagonizados por Yves Montand. Ou ainda no recente Comportem-se como Adultos (2019), revisitando a experiência de Yanis Varoufakis, em 2015, na atribulada governação da Grécia.Digamos, para simplificar, que O Último Suspiro está longe de representar uma “viragem” na caminhada cinematográfica de Costa-Gavras. Afinal, para ele, como sempre, é na vida de cada indivíduo que se enraíza a dimensão política do que somos ou queremos ser - na vida e, se for caso disso, também na morte. .'Balada de um Pequeno Jogador'. O brilho das imagens e a sua retórica .'A Memória do Cheiro das Coisas'. A história também pode ser minimalista