Há uma diferença essencial entre filmes infantis e filmes sobre a infância. Os primeiros são adaptados ao olhar pueril das crianças; os segundos, noutra esfera de sensibilidade, procuram despertar a empatia com as personagens e o universo que as rodeia - não interessa tanto se o espectador criança alcançou no imediato o significado mais profundo do filme, mas se vai recordar o sentimento que lhe ficou depois de o ter visto. Estas últimas são as obras que perduram em nós e pedem revisitação. O Jardim Secreto (1993), de Agnieszka Holland, consensualmente considerada a melhor versão cinematográfica do romance infantil de Frances Hodgson Burnett (publicado em 1911), pertence a essa categoria. E numa quadra tão oportuna como a Páscoa, o leitor, de qualquer idade, pode descobrir o quão maravilhoso é (re)visitar este hino ao poder curativo da natureza escondido num recanto da Netflix, como um segredo bem guardado..A história que aqui se conta começa na Índia, onde Mary Lennox (Kate Maberly), a narradora, se apresenta como uma criança negligenciada pelos pais ricos, estes preenchidos com o convívio social. Em breve, essa menina que "não sabe chorar" ficará órfã e será enviada para a casa de um tio em Inglaterra (estamos no fim de era vitoriana, princípio da era eduardiana), onde o cenário afetivo que a espera não é mais caloroso. A mansão, escura e demasiado vazia, é o reflexo dos seus poucos habitantes: uma governanta austera (Maggie Smith) que não cede aos hábitos de mordomia da pequena hóspede; o senhor da propriedade (John Lynch), soturno, entregue à depressão e quase sempre ausente em viagem; uns quantos criados e uma voz que, no início, Mary não sabe de onde vem. Está tão sozinha ali como estava na Índia. Com uma diferença....Ao explorar os acessos ocultos da mansão, a aventureira solitária vai dar com um quarto, e aí com uma chave que abre a porta de um jardim abandonado na propriedade. Um lugar de que ninguém fala e com qualquer coisa de "magia perdida" que precisa de ser reabilitada. Mary faz desse jardim a catedral do seu renascimento naquele lugar. E a ela junta-se, primeiro, o irmão de uma das empregadas da casa e, depois, o primo que vai descobrir encerrado num dos quartos. Colin (Heydon Prowse) está confinado ao leito, é tratado como uma criança doente - ele próprio não se cansa de repetir que vai morrer - e, aparentemente, é incapaz de andar. Será mesmo?.O horto que Mary devolve à vida, com cuidado e ternura, é a grande metáfora da "ressurreição" que acontece em todas as personagens que tinham a alma apagada - incluindo a própria protagonista. O Jardim Secreto não é só um filme sobre botões de rosa a desabrochar, vegetação a crescer e a fauna que rodeia a convivência das crianças (mesmo que seja muito sugestivo ver coelhos a saltitar, patos, passarinhos, um cordeiro, um cabrito e um cervo bebés). Na sua camada interior, é uma história sobre o reaprender das emoções, de gestos viscerais como rir e chorar, mas também sobre as pessoas que devemos proteger com amor e não com cegueira terapêutica, e, finalmente, sobre o recuperar da magia que habita a natureza em si. Não há, aliás, nada no filme que force a nota da fantasia sobre o realismo: ela nasce pela deslumbrante beleza floral do jardim, que se contrapõe à escuridão da casa. Essa transição é, de resto, o movimento que revela o menino acamado: ele sai das trevas do quarto para a luz do jardim colorido e viçoso. É o desconfinamento poético. A Páscoa simbólica..DestaquedestaqueO Jardim Secreto é uma história sobre o reaprender das emoções, de gestos viscerais como rir e chorar, e sobre o recuperar da magia que habita a natureza. .Produzido pela American Zoetrope de Francis Ford Coppola, O Jardim Secreto foi dos primeiros filmes de língua inglesa da polaca Agnieszka Holland (de quem, dentro de pouco tempo, vai chegar às salas de cinema o mais recente Charlatão). E é, sem dúvida, o seu filme mais delicado e comovente, com um olhar que se pode comparar à atitude inicial da governanta interpretada pela sempre extraordinária Maggie Smith. Entenda-se: a lente da realizadora começa por preservar uma certa rigidez, e depois deixa-se levar pela própria vivacidade dos seus jovens atores, perfeitamente enquadrados no lirismo do jardim. E, nesse sentido, o drama não é aqui suavizado por qualquer arranjo de "filme infantil". O trauma, os fantasmas que envolvem as personagens fazem-se mesmo sentir, e a transformação de Mary, uma menina petulante que aprende o valor da amizade e se liberta do espinho cravado pela sua vivência na Índia, não resulta numa amostra mais ou menos engraçada de comportamento traquinas. Pelo contrário. O tom gótico que Holland define com destreza é o que dá elegante contraste às imagens ricas, visualmente cheias e impressionantes, do pequeno paraíso à porta de casa.."Muito da minha infância está dentro deste filme. E a Kate Maberly, que interpreta Mary, parece-se um pouco com a pequena Agnieszka - mesmo que eu fosse mais um Colin, porque passava muito tempo na cama [doente]. Este é um livro que li muitas e muitas vezes", confessou a realizadora à Vulture, no último ano. Com o Dia do Livro Infantil aí à porta (2 de abril), a sugestão de leitura do clássico de Frances Hodgson Burnett impõe-se..Porém, é a O Jardim Secreto de Holland que chamamos "o mais belo filme de Páscoa". Especialmente para esta Páscoa. O retrato da Primavera da alma que estamos todos a precisar. Um toque de sabedoria da infância que acalenta os adultos..dnot@dn.pt