Filme-catástrofe? A expressão caiu em desuso. Para designar as produções de Hollywood apostadas em surpreender pela dimensão dos seus meios, e também das suas tragédias, triunfou a palavra “blockbuster”, cada vez mais associada às aventuras nem sempre gloriosas dos super-heróis. Tempos houve em que a catástrofe — lembremos Terramoto e A Torre do Inferno, ambos de 1974 —, mais do que um “tema”, se impôs como emblema de um cinema que queria oferecer a monumentalidade que a televisão não podia ter, rentabilizando a rápida evolução dos efeitos visuais e sonoros. Disponível na Netflix, O Grande Dilúvio, de Kim Byung-woo, é uma produção de origem sul-coreana que podemos associar a tais memórias, ainda que provenha de um universo industrial e cultural muito diferente — prevalece a noção de que o cinema possui os meios necessários e suficientes para encenar um apocalipse que, como manda a tradição, ameaça destruir o planeta Terra. Ou como diz uma personagem, logo nos primeiros minutos: “A raça humana, tal como a conhecemos, acaba hoje.” A premissa é sugestiva: um asteróide atingiu a Antártida, derretendo as calotas polares e gerando, não exatamente um dilúvio, mas uma inundação gigante (The Great Flood é o título internacional). Como é típico deste modelo de ficções, conhecemos a situação, não de imediato através do seu impacto social, antes observando um universo familiar muito particular. O filme começa por nos mostrar, em Seul, a jovem cientista Gu An-na (Kim Da-mi) e o seu filho Ja-in (Kwon Eun-seong), uma criança que tem a paixão da natação, acordando mesmo a mãe com o projeto de começar o dia a visitar a piscina do complexo urbano em que vivem. .As águas sobem rapidamente e, em poucos minutos, o pânico domina tudo e todos. Com o segundo andar do apartamento de Gu An-na a ser inundado, começam a ouvir-se apelos para os habitantes subirem pelo menos até ao 10º andar... As coisas tornam-se ainda mais perturbantes quando surge um homem armado que foi enviado para proteger a protagonista, tendo como missão conduzi-la ao seu centro de trabalho — Gu An-na faz parte de uma equipa de cientistas a desenvolver um “gerador de emoções”, ou seja, um projeto de salvação da humanidade através da sua “recriação” por programas de Inteligência Artificial... A curiosa vibração dramática dos primeiros minutos, para mais servida por efeitos visuais capazes de rivalizar com algumas produções provenientes dos estúdios americanos, vai-se dissipando numa narrativa mais ou menos onírica, tão esquemática quanto redundante. Tentando ser um pouco de tudo, “thriller”, saga familiar e parábola de ficção científica, O Grande Dilúvio vai-se perdendo pelo caminho, ainda que, no seu centro, Kim Da-mi se afirme como uma atriz obviamente talentosa. Que quer a Netflix? Fica uma pergunta cada vez mais incontornável: que pensamento criativo e estratégia cinematográfica sustentam (ou não) um filme como O Grande Dilúvio? Aliás, a questão ecoa uma outra grande produção também proveniente da Coreia do Sul — Okja (2017), de Bong Joon Ho —, que na altura simbolizou os planos de crescimento da Netflix, até mesmo na secção competitiva do Festival de Cannes. Na verdade, em Cannes, antes de ser projetado para a imprensa, o filme de Bong Joon Ho suscitou um evidente mal-estar pelo facto de a Netflix não se comprometer a estreá-lo nas salas — o presidente do júri, Pedro Almodóvar, disse mesmo publicamente que considerava que não fazia sentido distinguir um filme que só pudesse ser visto nas plataformas de streaming (Okja não teve qualquer prémio). O problema persiste, enraizando-se, aliás, numa contradição absurda: independentemente de considerarmos O Grande Dilúvio como um filme “bom” ou “mau”, que sentido faz reduzir a sua difusão aos ecrãs caseiros quando todos os seus elementos (a começar pela monumentalidade dos cenários e a envolvência sonora) apelam aos recursos de uma sala de cinema com um grande ecrã? Tendo em conta que, como se sabe, a Netflix quer adquirir os estúdios Warner Bros., o assunto é mais atual do que nunca.