Interpretar o presente à luz do passado. É isso que Marco Bellocchio faz neste thriller religioso de época, impiedoso a não ceder da doutrina ao estilo, rigoroso na concretização de um compasso de emoção, tão pesado como retumbante..Presente na competição do último Festival de Cannes, Rapto é a história de um rapto verdadeiro conhecido como o Caso Edgardo Mortara, ocorrido em 1858, quando o pequeno Edgardo foi violentamente retirado da sua família numerosa judia pela Igreja Católica por ordem do Papa-Rei Pio IX e levado de Bolonha para Roma para uma vida de seminarista.Trata-se de um caso de justiça irreparável que foi sempre bandeira de protesto de toda a comunidade judaica e mostrou o abuso de poder do Vaticano na esfera pública. Um rapto que provocou ondas internacionais e deixou traumatizados os pais de Edgardo, tendo também indignado Napoleão. Bellocchio interessou-se por esta história em parte por ser laico mas, sobretudo, por poder conter uma reflexão de fanatismo religioso, algo tão premente nestes tempos modernos. .Um olhar intimidante.Com um dispositivo narrativo que contrapõe o fervor religioso judaico e católico, acompanhamos uma angústia familiar marcada pelo vazio de um filho perdido e um processo de educação com os rituais clássicos pertencentes a uma regra que se confunde com o mais profundo grotesco.E aí é interessante observar a transformação de um corpo que se molda, neste caso do menino Edgardo que se torna num homem sem alma perante as algemas de um Estado tão opressivo como obsessivo. Essa observação, mesmo com toda a distância ética, é processada com um tom verdadeiramente inquietante. .O fascismo religioso.O Rapto não tem arrependimentos da sua veia pesada, carregada. É um filme orgulhosamente carrancudo na sua obstinação classicista, não trafulha por truques fantasistas de realização ou por atalhos de elipses - vai direto ao assunto. Um Bellocchio seguro no tom e a assinar um dos seus melhores filmes, sempre próximo dessa imponência da sua gravidade. Filma-se o poder e o seu peso maléfico, mas sem nunca se desviar de uma profundidade trágica. E nessa ausência de barroquismos, o efeito prático ajuda nessa ideia de ensaio sobre obediência, como se o militarismo da religião fosse o mandamento de um simulacro do fascismo, sendo precisamente nesse ponto que encontramos rimas com alguns dos grandes filmes do passado de Bellocchio.Com tudo isso, não deixa de ser curioso imaginar este projeto nas mãos de Steven Spielberg, cineasta que chegou a estar na rampa de preparação para filmar este episódio marcante do imaginário judeu em Hollywood. Seria certamente um filme mais didático e com outro nível de espetáculo. Contentamo-nos com o golpe de cinema de Marco Bellocchio. Um golpe forte, incisivo e sem medos de denunciar um dos maiores abusos da Igreja Católica no qual não cabem zonas cinzentas, nem dúvidas na descrição dos vilões. O obscurantismo da fé cega numa religião é filmado diretamente. Filtros para quê?